terça-feira, 27 de julho de 2010

Aves raras

Misturamo-nos nos copos de vinho pervertidamente divididos em que a saliva se toca sem darmos conta, em que se passam as histórias da vida sempre tão heróicas nas nossas bocas, onde se mistura o sabor acre dos dedos fumadores com a frescura da noite que assenta nos telhados das casas. Misturamo-nos. Pervertidamente porque a vontade é inusitada. As mãos feitas dos mesmos calos e o sangue das feridas que pingam no linho branco da mesma maneira. As manchas do linho e dos copos que são a mesma. Nas orgias das palavras o entendimento supera o coração, a liberdade a crueza dos dias. As palavras que se misturam nas bocas como o liquído dos copos de vinho. As mazelas são as mesmas. Os mesmos tombos no quintal, os mesmos verões abrasadores marcados na pele, a mesma sede de ver o mundo como uma viagem num comboio rápido. Os desenhos da liberdade traçados nas bochechas: o homem que matava galinhas no México, a mulher que se fazia passar por morta à hora em que o marido regressava do trabalho, a outra mulher que dormia ao lado do cão de louça, os putos do skate que faziam pactos de sangue na Expo, as virgenzinhas desejando o sexo e aqueles míudos, por corroromper, que trocavam cartões eróticos nas mochilas. Era assim a nossa cabeça, a minha e a tua, mas que às vezes era só uma. Uma gigante cabeça insuflável que tomaria sempre o caminho mais distante para casa. Aquele em que mais gente se cruzaria nunca ficando, aquele que fazia a manhã levantar-se algures nas sarjetas. A minha e a tua cabeça flutuante, flutuando como um helicópreto por cima das piscinas municipais cheias de mijo e dos piqueniques gordurosos nos pinhais. Mas às vezes passavam pássaros que nunca tinhamos visto. Pássaros raros: como aquele bando de mitratas verdes . E nós de gaiola na mão tendando roubar-lhes as asas. Para as pormos nas nossas camisolinhas de alças em linho. E depois o nosso sangue que pingava e as manchas uniformes que deixava no passeio. Manchas como ovos mal estrelados. E não é que te conhecesse há tantos anos assim. Já tinha passado a puberdade certamente. E nisto a nossa pulsação sempre incólume. Sã e salva das nossas loucuras, das noites violentamente roubadas ao sono, da espontaneidade das palavras, do olho clínico dos observadores estrangeiros. Que dor de barriga me dá este riso. Este riso que me faz recordar-te. Fura-me. Como um pau de madeira aguçado. Fura-me os olhos. Como os do Édipo. O que cegou, estás lembrado? Ele também esperou sair incólume dos seus crimes: porque não os conhecia e porque talvez se julgasse mais limpo nos seus procedimentos. Será que lhe doía a barriga? Alguma vez te doeu a barriga? Como se fosses explodir, não só a tua barriga mas o teu corpo todo a derreter-se nos poros? E só porque te rias, só porque te rias como as hienas e os abutres. Os abutres comeram as mitratas, lembraste disso certamente? Ou fomos nós? Fomos nós que comemos as mitratas irrandiando liberdade? Teremos perdido o pudor? Perdemos não há dúvida, mas antes ou depois da puberdade? Terá tido pudor, o Édipo, quando fez deslizar a túnica de organza pelos ombros da mãe? É esta a liberdade, a tua e a minha liberdade e a nossa cabeça insuflável gigante? Um dia, e temo que possa mesmo ser hoje, agora, vou-te pespontar na minha pele, ponto por ponto. Quando regressar a casa posso não voltar a ver o bando de mitratas verdes mas estarei certamente mais próxima do amor.

terça-feira, 9 de março de 2010

Os doidos não-clínicos

Não tenho nada para dizer. Não tenho nada para dizer, já disse. Mas as mentiras são maiores. Porque há sempre alguma coisa para dizer, há sempre material para afirmar: dizer que não quero é por si só a afirmação de um não-desejo. Desejo que paro de chover, dizia ela. Esta mulher, no meio da tempestade, falava dos filhos feitos e da teimosia da chuva impertinente - como as crianças. Desejo que pare de chover, dizia ela. A janela acordou brilhante, desviada da chuva que esfria a pele. A chuva faz-me lembrar os homens - os homens que estão esquecidos naquele passado já enevoado, sabe? Aqueles homens que deixaram de ser história. Como o José da Maria, lembra-se? Deixou de ser louco e de corromper a carne com vinho azedo. Deixou de se enfeitiçar com as palmilhas gastas dos sapatos das menininhas virgens. Deixou de ser história, por isso. Já não tem nada para dizer. Regressou à impossível normalidade dos que vivem bem e felizes. Eu devia regozijar-me, sabe? Devia felicitá-lo pela conquista. Mas não posso, não foi assim que o conheci e agora é um estranho. Um estranho que deixou de ser um desafio, um desvio dos dias curriqueiros e simples. Estará ele feliz por ter conquistado essa paz? Foi tao brutalmente seringado, o rapaz... E aquele outro lembra-se? O que atravessava o Tejo no cacilheiro último com destino a Cacilhas? Está casado e tem dois, três filhos... Será possível? Passou tão pouco tempo. Meses tão curtos. Transformou-se. Tem uma casa e até paga as contas. Os deveres em dia. Estrangeiro, esse homem. Ele que sempre me dizia tantas coisas estranhas sobre a vida. Agora são só memórias e nada para viver. Até cortou o cabelo. Quer dizer, ele viverá as suas aventuras, mas para quê? Eu pensei que se esgotassem as coisas para dizer se eles desaparecessem, pensei que voltaria a tornar-me também eu nesse homem simples. Mas não é fácil, sabe? É uma doença da pele esta coisa de querer viver o mundo de enfiada. Amanhã não é outro dia. Amanhã é o futuro e o futuro a Deus pertence, pois então. Não posso ser um homem jovem que se levanta ao meio dia e toma o café na cama. Não posso ser o homem cumpridor dos deveres impostos. Eu sou um homem doido. Quer dizer - não me interprete mal - um homem doido inofensivo. Mas não tenho mobília em casa, é um espaço acéptico e formal. Desprovido de pessoalidade. Também não me lembro da infância ou da impertinência de ser adolescente. Lembro-me tão somente dos últimos três anos. E não pense que sou doido, desses doidos clínicos que engolem frasquinhos de químicos. Não sou demente. Sou só um doido esfomeado. Não me lembro das coisas que disse e não tenho muitas opiniões sobre o mundo e arredores. Sou simplesmente um entusiasta dos pormenores, do excesso e da desgraça. Não sou um homem velho devasso nem um adolescente insolente. Sou um homem excessivo e de boca amarga. Sou um homem sem história. Isso incomoda-a? Transtorna-a? Não fique pensativa... Não é assim com toda a gente. Não temos todos de desejar a solidão. Eu desejo-a com convicção. Há muitos assim como eu, sós. E se pensar bem não há um desnível assim tao grande entre estar só ou acompanhada. Pior se estiver mal acompanhada. Não sou o primeiro homem a falar-lhe de solidão, pois não? A menina tem uma pele tão branca e olhos tão escuros. Não, não recue. Isto não é a canção do mariola. Não estou a seduzi-la percebe? Mas é raro encontrar uns olhos assim tão pretos e tão fundos. Dorme pouco, a menina? Parece não haver fim para esse negrume que lhe circunda o rosto. Não me leve a mal, sou um doido daqueles que não são clínicos. Não há nada que deva temer. Mas estou terrivelmente só. E isso não me incomada, perceba. Mas às vezes é bom desviar-me da vida acéptica do meu quarto e olhar para algumas caras. A menina está só? Espere, não precisa de responder. Posso calcular que não. Posso calcular que esteja simplesmente acompanhada. E tem memórias com certeza. Lembra-se da sua mamã? Bordava-lhe camisolinhas de renda? Tem cara disso, a menina. Pele branca, olho escuro e camisolinhas de renda...

domingo, 1 de novembro de 2009

Sobre a repetição

Compreendo que às vezes se cometam erros.
Compreendo que esses erros se repetiam mais uma ou duas vezes.
Insistir na estupidez, infelizmente, deixei de acreditar...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Daquilo que está para vir

Acreditando na insuficiência das palavras o corpo é muitas vezes o veículo revolucionário da acção. O corpo que simplesmente existindo procura o trajecto da secura, do esvaziamento, da exaustão e do êxtase. Procurar o corpo é também procurar o lugar onde encontramos o outro, aquele que fornece energia para a combustão. Não há lugares fáceis nem cómodos. Aqui, a regra, se a há, é a da ruína, a do perigo de obra que se decompõe. Narrativa? Uma história que se conta? Talvez. Porque a imagem terá a força do engenho explicativo das palavras, porque o non-sense ou o desejo de edificar abstractamente podem conduzir-nos à expressão máxima do despojamento e da agressividade.
A fragilidade do corpo e das estruturas enviam-nos para destroços de guerra, para sítios inacabados onde a imaginação não concluiu tarefas, para edifícios devolutos onde a memória impregnou marcas através do sangue dos que morreram e dos que ficaram para contar a história. hoje, não procuramos narrar um processo nem fazer uma viagem explicativa pelos meandros do pensamento que aqui nos conduziu. Vivemos também da sensação última e limite que nos provoca a experiência temporal e geográfica da partilha dum espaço comum. e neste caminho tantas foram as vezes em que o tempo e o espaço perderam o seu sentido mais imediato.
Assim se lançam as primeiras pedras para a construção de uma casa. Uma casa, literalmente, o sítio onde nos encontramos. e se construir uma casa for um gesto tão simples como o desejo de comunicar, chegar perto da verdade do espectador que inadvertidamente acabou enclausurado num teatro? Aqui procuramos a surpresa, o choque do confronto entre a identidade do intérprete e a identidade do espectador. Procuramos acima de tudo questionar o erro e assumi-lo. Procuramos sublinhá-lo. Procuramos o erro por si só. Correndo o risco da derradeira queda, do derradeiro fiasco, chegamos com a convicção última de acreditar no teatro como um espaço interventivo e urgente onde a mais premente razão de construir um objecto artístico é o valor humano de viver.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A primeira parte dos pequenos prazeres da jovem incendiária

Quando acordei já as chamas tinham varrido metade do quarto. A metade que era minha. Ou a minha memória. A estante latejava em altas labaredas, as folhas desfaziam-se em cinza e o fogo ateado até hoje não sei porquê consumia os livros, os cadernos, os diários, os bilhetes de amor da tenra juventude até não sobrar nada que pudesse contar história. Fiquei deitada, imóvel na cama pronta a assistir ao espectáculo. O fumo já se fazia sentir nos meus pulmões que visivelmente diminuíam de tamanho a cada minuto que passava. Não estava assutada. Sempre houve , naquilo a que corresponde a minha ideia de identidade, um grande fascínio por ver coisas arder. Desde pequena que eram muitas as tentativas de pegar fogo a mim própria ou a coisas queridas. Por isso nem me esforcei muito para sair da cama. Não entrei em pânico. Não tive vontade de chorar por perder a estante. O calor daquele pequeno inferno montado no quarto era mais reconhecível que qualquer memória. Se esperasse mais uns minutos talvez o fogo se aproximasse de tal forma que eu pudesse tocar-lhe com as minhas mãos, fazendo-as empolar-se até a carne se sobrepor à pele. Não há dor mais agoniante do que as das queimaduras. Conheço-as bem, a essas dores. Tantas foram as vezes que me tentei incendiar. Em pequena lembro-me de despoletar a catástrofe por causa da cor, depois o mote incendiário foi mudando: havia dias em que simplesmente o humor o exigia, outros dias tinha frio debaixo dos abafos de Inverno do meu pai. Na verdade, bastava a corpo mudar de eixo para desejar violentamente pegar fogo ao mundo. Depois houve a altura em que era o corpo que incitava as revoltas: primeiro com o ferro de engomar e as mãos marcadas pelas queimaduras, depois o forno e as travessas que aqueciam demais, depois as panelas de água a ferver, mais tarde as velas que tombavam acidentalmente sobre a barriga. Foram longos os anos que passaram até ter impresso na pele a memória de todas as extravagâncias. A mãe e os professores espantavam-se com tanto acidente. Os homens com quem me deitava lançavam olhares piedosos sobre as cicatrizes. Havia um certo divertimento, digo, para mim. Neste jogo de pena incrédulo que me lançavam os estrangeiros. Nunca ninguém suspeitou dos meus vícios incendiários. Nem mesmo quando a àrvore de Natal pegou fogo na casa de férias dos avós.
No Inverno acendia-se sempre a salamandra. Ficava dias sem parar sentada em frente ao fogo que consumia as madeiras secas da garagem. Até o fumo fazer os olhos arder. Até já não se poder ver. Até o corpo suar tanto que parecia Verão. Até caírem lágrimas perante o espectáculo. Mas desta vez, desta vez a culpa não era minha. Não tinha sido eu a incendiar a estante e estava por isso muito agradecida a quem quer que tivesse despoletado esta incrível visão.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sobre fazer primeiro aquilo que se devia fazer depois

Precipitei-me contra ti, porque tinhas os olhos bonitos e o cabelo negro como o luto das velhas. Trocámos palavras, poucas ficaram para contar história.
Depois precipitei-me para longe de ti porque me cheiravas a coisa estranha e desalinhada. Trocamos palavras, e a partir de hoje vamos construindo a nossa história.

domingo, 11 de outubro de 2009

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Isto é um mar de chatices. Como aquele mar onde o Tejo perde os filhos. Juntos para a desgraça: estamos juntos para a desgraça. Unimo-nos para não fazer bem e isso não significa que a queda nos faça partir a cabeça. Vai só deitar um bocadinho de sangue e nem vai doer nada. Isto é um grande mar de chatices. A parede está intacta e a verdade é que temos coragem de lá ir com a cabeça, errar e perder. Corremos esse risco porque compreendemos a causa, como os revolucionários: a luta a ser travada é clara e precisa, quase cirúrgica. Para ver as raízes não foi preciso escavar até muito longe, o encontro deu-se com facilidade. As raízes porém, em tão curto tempo e tão ousadamente cresceram até partirem o cimento e a calçada. Isto é tudo um grande mar de chatices e essas raizes sao fruto de um compromisso assente na possibilidade da queda. Cair é das sensações mais alucinantes que se pode ter: não saber como vai acabar o corpo, cair até esmagar o coração. A inconstância é poder cair a toda a hora, esmagar os ossos todos e estar pronto para cair de novo. Haverá sensação melhor?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Suor e consequências

Está calor. As coxas suam. Tu pareces um cadáver pálido, sem boca nem norte; sem olhos porque foram comidos pelos ratos. A visão enevoada da tua cara faz-me pensar que perdi o discernimento. Sabes como me chamo, ou és apenas um cadáver roto na minha sala? No outro dia perdi o teu nome. Estava no bolso, no meio da papelada inútil que se acumula nos bolsos e acabou por ir tudo para o lixo. Também não me fazia falta. Saber o teu nome porquê se nunca mais te vejo na vida? Caíste do barco com tanta exaltação em que fervias sobre a mudança e a fé. Como não tinhas nenhuma foste traído pelo entusiasmo. Que te tenha sabido bem o banho, melhor a aflição. Tu e o teu nome perdidos para sempre: na lixeira e no mar alto. Não te dá vontade de rir? De rir comigo quando penso nestas coisas? Tu fazes-me rir quando me beijas a cara com pressa, como uma criança que nunca beijou uma boca. Mas eu conheço-te malandro, tu e a tua canção de mariola. Pensas que me enganas falando da liberdade quando já se envelheceu tudo? Não. Conheço bem a tua canção de mariola, já disse. E ainda assim, não deixas de parecer um miúdo quando me beijas a cara com pressa.
Está calor. As coxas continuam suadas. Como depois do sexo. Agora diz-me, quando te encontrarem a boiar junto à costa saberão que fui que te empurrei? Saberão isso porque me beijaste antes de cair? Ou saberão simplesmente porque sim, porque essa seria a única possibilidade? Cúmplices na tua ou na minha desgraça; no teu ou no meu desejo? Tantas mentiras e nem por isso menos entusiasmo. Serias capaz de nadar se o mar fosse de verdade ou ias deixar-te afogar como fazem os fracos sem sangue? Bebeste o que restava do meu porque o fui doando a todos os que passaram. Já não tenho sangue, nem cabelo, nem palavras na boca para as dizer. Só tenho calor e mesmo que me tente lembrar do frio do chão de tijoleira nas minhas costas o calor não passa. Como se fizesse amor contigo há muitos dias, anos talvez, sem nunca parar. Nem para cigarros. Fumo quarenta por dia, sabes? Por isso é que a boca amarga quando me beijas. Não me pedes nada e entre nós isso é recíproco. É, na verdade, a única coisa bonita que tivemos juntos. Nunca pedimos nada um ao outro. Mesmo quando a tua palidez te fez desfalecer na minha sala.
Está calor. Tenho as coxas e as mãos suadas. Escorrega-me tudo. Já parti dois pratos: o que devias ter levantado antes de morrer e o que eu devia ter levantado antes de morreres. É esta porra deste calor que faz cair tudo das mãos. Até tu que estavas nos meus braços me caíste à água. Eu pensei empurrar-te mas não quis empurrar-te, percebes a diferença? Por isso, posso dizer que me escorregaste por causa do calor e do suor das mãos. Ou achas injusto? Tu que me bateste com esses braços de homem forte mil vezes sem nunca deixar marca; tu que me deixavas à espera durante a noite para que talvez chegasses, pálido e suado de outras mulheres? Eu sempre soube que daí vinha pouca coisa, ou nenhuma sei lá. Mesmo naquele dia em que corri por causa da faca, vieste salvar-me? Deixaste tudo para me proteger? Nunca. Eu que me salve sozinha que se já posso dar beijos na boca também posso defender-me. Deves ter tremido de entusiasmo só ao imaginar a faca a trespassar-me a pele. No meio dessa miragem viste algum sangue? Diz-me camelo se viste algum sangue, porque se viste o meu não era te garanto. Bebeste-o todo porco! Tinhas sede porque estava calor e vá de beber o que era meu.

Mãos de amor

Há uns dias olhei para as minhas mãos. Eram jovens e vigorosas. Tinham poucos traços porque conheciam poucos homens. A memória das mãos é a mais fidedigna. Hoje, quando olho para as minhas mãos vejo trabalho calejado, tremores até à boca por não conseguir alcançar os cigarros. Passaram tão poucas horas entre conhecer apenas um amor e depois tantos que de amor não têm nada. O que é que eu fui fazer... Como vim eu aqui parar, a este sítio onde as mãos tremem e suam; onde o amor é um sonho mal concretizado?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Cacilhas às 02:00

Revoluciono-me. Sem adolescência nem jovialidade. Revoluciono-me por reconhecer como algumas coisas funcionam por serem coisas do mundo. Deixei de ter medo de morrer para passar a ter medo de foder. Por isso a revolução acontece não fora, na rua, mas dentro, nas veias. A revolução não-adolescente, não-adulta é apenas a concretização das horas que passamos juntos em deambulações extravagantes impulsionadas pelo vinho dos amigos indianos. Tantas horas e tanto vinho, tantas conversas de mudança, de arte sem arte. E depois aquela viagem até Cacilhas, quando a noite rebentava já em horas altas e o Tejo era frio e ventoso. Estávamos encostados às quinas do barco, como num filme onde as personagens parecem parar para pensar nas horas que passaram. Eu ali, encostada, no Cacilheiro último que partia de Lisboa, lembrava-me de como teria sido bom partilhar aquele pedaço de fita com uns tantos ausentes naquele pedaço de quina. A luz, em Cacilhas é sempre diferente. E isso já dizia a amiga Catarina que voltou há pouco do Brasil. Cacilhas é diferente porque tem um farol. Eu serei diferente porque estive em Cacilhas.
E com tantas coisas que quero sempre dizer, hoje fiquei sem pio!

sábado, 29 de agosto de 2009

Aos remosos em noite de vinho

Estamos amarradas pela mesma noite em noites diferente.
No fim, ficou a culpa que não é nada. De quem é a culpa afinal? Minha? Minha?
Quero repetir a desgraça. Talvez seja esse o grande lugar do arrependimento.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

A ti, pássaro de voos.

A cara fazia lembrar os dias dos vinte anos. As mãos, porém, contavam outras histórias: como daquela vez em que o piano tocou durante seis dias sem parar. Os olhos faziam lembrar o maduro dos pessegos quando eram roubados às árvores. As mãos, porém, contavam outras histórias: como naquele dia em que a faca deslizou entre a primeira camada de pele e a veia que chegava ao pulso. Toda ela eram vinte anos, vinte anos de lábios e de caracóis amarrados em tiras de tecido esgaçado. As mãos, porém, contavam outras histórias: como um dia nos conhecemos quando éramos jovens e preguiçosas e o sol desenhava o contorno das nossas camisolinhas de alças por estarmos tantas horas no jardim.
Hei-de olhar para as tuas mãos até morreres. Embora saiba que vou morrer primeiro. Mas as tuas mãos pequenas, delicadas como seda, calejadas pelo trabalho nos hospitais cheios de velhos e de crianças moribundas são a memória mais viva, mais viva que conheço. Não há no mundo outras mãos que não as tuas, querida amiga, e ainda havemos de assinar em muitos caderninhas as aventuras que já foram os nossos tenros anos. Olho para ti e conhecço-te há mais de 20 anos, há bem mais. És aquilo que de mais intímo há no mundo. Quando ficas fora durante tantos anos, regressas e posso olhar-te como se o nosso encontro não tivesse sido interrompido por tantos comboios, tantos livros, tante gente diferente. Então, o amor é um lugar estranho. O nosso é eterno porque as tuas mãos Carolina, as tuas mãos são o que de mais intímo há no mundo.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Os dias da felicidade

30 vezes. 30 vezes 30 e não sei quantos ficaram de fora. 30 vezes 30 eram 300 há 3 dias. Fugir para onde? Não consigo parar de contar. Conto, conto os dias da exaustão. Tenho a boca seca e ainda falta muito para chegar ao fim. 30 vezes 30 são 300 de manhã. 300 copos de àgua para roubar à secura a persitência. 3 dias para 300 copos. 300 copos de àgua para depois passar por àgua e arrumar de novo. 3 horas para a tarefa. Volta e revolta aos copos cheios que agora estão vazios. 30 vezes 30 são cigarros para um dia. Cigarros a meio e copos para tapar a secura do amago na boca e das vezes, 300 as vezes, para contar. 30 vezes 30 são 300. Somando aos dias todos que tenho contado talvez sejam 300 mais 300 mas não sei quantos são porque a boca amarga, está seca e gretada. 3 minutos para pôr o creme que cobre as frechadas de sangue. 30 euros quanto gastei por contar à 3000 mil horas números que não passam disso mesmo. Estarei louca ou passei a noite a sonhar? 30 vezes 30 e estalei os dedos menos 3 vezes do que devia. As arteroses que terei aos 30 serão menores do que aquelas que terei aos 300. Aos 300 estarei enterrada na terra há pelo menos 30 vezes menos anos. 30 vezes 30 são as horas para pintar a sala de branco até doeram os ossos e os punhos não cerrarem. Quanto é 30 vezes 30? Perdi-me no raciocínio. 30 vezes 30 é o tempo que demoro a chegar de casa a casa. Não tenho casa, tenho casas e 300 horas é o tempo que demora a percorrê-las a todas. Perdi-me outra vez. 300 horas para chegar onde? Sim, a casa. 3 minutos é o que preciso para beber 30 copos de àgua, para tapar a secura das noites que gretam os lábios e os fazem sangrar. 30 vezes 30 dá 300, 300 menos 30 dá 3000, 3000 vezes 300 volto ao três. Três são as vezes que gritei contigo por deixares a tampa da sanita levantada. 3 cigarros restam para acabar o maço. 30 vezes 30 são as dores na cabeça que não deixam pensar. 30 vezes 30 são as vezes que ainda gritarei contigo por causa da tampa da sanita. 3000 vezes são aquelas em que não me curvarei perante o poder. Todos sem poder são menos 30 e assim seremos 3000 vezes 30 com mais poder. 300 é isso? 300 com poder? Ou seremos mais, mais loucos menos poder, mais loucos mais poder, 30% de poder e 3000 loucos poderosos. A sala está branca depois de tantas horas de trincha na mão. 3000 dias de poder para a ver assim. Sala sueca a 30 graus centígrados. 3000 são os dias que faltam para a pistola disparar. 30 balas são as que estão dentro da pistola. 1 pistola ou 30 pistolas? Perdi-me no raciocínio. 300 vezes foram aquelas em que trocámos beijos a aquecemos leite no microondas de manhã. 300 vezes as que fornicámos. 30 as que me lembro. 3 em que morremos. Menos 3 em que nos encontrámos. 30 cl de sangue foi o que doei para o teu transplante porque o fígado sucumbiu ao fim de 300 dias de cerveja. Menos 30 cl de sangue foi a consequência do teu devaneio. Não espero por ti, não mais 3 minutos - vida inteira à espera da tua chegada montado no tanque de guerra que sempre prometeste - 300 dias de promessas sobre a morte pela causa e a causa pela morte. O tanque, disseste, teria sido comprado há 300 anos e ainda assim foram precisos outros 300 para te ver chegar. Mas tu não vens - oh homem inflamado - tu não vens e a boca vai secando, vai secando pelos dias que passo a contar 300 vezes 300 vezes 300 para te ver cumprir com a promessa. Louco varrido corrompido pela promessa dos 3000 mil ano depois de Cristo. Dizam que ressuscitou ao terceiro dia. Se o matarem 300 vezes ressuscitará outras 300 sempre no terceiro dia depois da morte. Falaste tantas vezes da revolta, do tanque que conseguiste arrastar-me para a tua casa, onde fornicámos 300 dias sem parar. Depois, quando a manhã rompia o leite fervia no microondas por três minutos. Estarei louca ou passei a noite a sonhar. Conto vezes conto e chego sempre a 30 vezes 30, menos 300 dá 3000. Onde foi o começo da odisseia, desta aventura idiota? Mais 3 cigarros menos 3 no maço. Maço vazio. Vazio vezes nada dá 300. 300 vezes nada dá mais 30. Perdi-me no teu raciocínio. Não tenho nada, nem o tanque, nem a sanita, nem o teu mijo na tampa, nem o sémem que deixaste no meu útero nem o leite porque o vomitei 300 vezes. Detesto leite. Detesto leite vezes 30. Detesto leite vezes 30. Detesto leite vezes 300. Detesto-me menos do que ao leite, mas só menos 30 do que ao leite e isso dá 3000 vezes mais ódio do que aquilo que possas esperar. 30 vezes 30 são as vezes que conto as vezes dos 30 anos. Faltam 3 vezes 3 anos para chegar aos trinta. Isso faz com que tenha quantos, quantos anos? Diz-me se tens coragem para saltar desse tanque revolucio-imaginário que compraste há 300 anos. Não tenho nada para te dar, tenho 30 menos nada para te dar. Nem revolta, nem sonho nem desejo. 3000 vezes em que me roubaste a vontade de lutar. Lutar contra o poder que vezes 30 dá mais 30. Não espero mais, não espero nem mais 3 minutos para a tua chegada. Sem tanque, sem a boca seca porque bebi 3000 copos de àgua parto para 300 dias de caminhada só. Só com a revolta que prometeste há 3000 anos atrás. Estás morto e a morte é uma coisa rápida. Não és Cristo e por isso não ressuscitaste ao terceiro dia, nem ao triségimo. Estás morto, pronto. Estás morto - tu e a tua revolta. Ah, que incrível maravilha. Estás morto há 3000 anos. Há 3000 anos que te espero. E a boca seca, a boca seca porque não paro, não paro de contar. 30 vezes 30 são 300, 300 menos 30 são 3000. Ah, estás morto, pronto. Estás morto tu e a tua revolto. Não vou parar de contar. Conto vezes conto até serem 3000 as feridas na boca, 3 sangues os que se misturam nos lábios. Estás morto, pronto. Estás morto. E nem imaginas a felicidade que isso me causa...

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A guerra (em crise) e os 1679 dias para o cessar fogo

Não. Decido não renunciar aos prazeres da carne. Que importa , que importa se as noites mal dormidas desregulam o pacífico decorrer das horas? Quando a humidade se entranha nos ossos, fico certa de que a vida existe naquele pátio e em nenhum outro lugar; num acaso que ainda agora me intriga, vejo-me nesse pátio, o cabelo húmido e os olhos sonolentos. Ao fundo aquela voz familiar que vagueia em recordações da infância. Já nesse mesmo dia me tinham dito que a infância era um lugar vazio e longínquo onde apenas ecoavam, espaçadamente, algumas memórias dos cheiros e da areia enfurecida pelos ventos de mar. Mas ali a infância era presente, e entre o desejo de ouvir a àgua cair naquela banheira ferrugenta ou de dormir até à hora em que as pessoas se agitam, desenhava-se uma linha muito ténue. A solidão já não é um lugar estranho e mesmo ali, naquele pátio vivo onde toda a vida se concentrava, dificilmente acreditei nos companheiros de viagem. A visão atordoada pelo vinho, pelo delírio da noite, pelo enfurecimento do cio traçava, como sempre, esse caminho solitário onde a voz parece rouca ; onde não há descanso para as mãos, onde o encontro insiste em mostrar-se impossível. Tudo isto dentro e fora de mim, mais a recorrente lembrança dos excessos em que não se pouparam os corpos e ainda assim só, profundamente só, entre a bebedeira e o descrétido, entre o sonho e o sexo. O cimento calejava a coluna porque o corpo acabaria por ir cedendo, lentamente à gravidade. Ali deitada, não consigo agora distinguir as coisas verdadeiras das falsas: as incríveis odisseias da imaginação e aqueles factos que ainda assim nos prendem à terra. A água corria como uma mulher louca e em momentos brevíssimos recordei o homem da maçã de adão que eu beijara com a língua, as guerras em tanques militares bem travadas por homens bravos, as balas perdidas, as espinguardas. Entrecortando as recordações, a voz longínqua do homem dizendo: por desinspiração artísticas declara-se o cancelamento deste indivíduo por tempo indefinido uma vez que em nada tem contribuído para o desenvolvimento da arte tendo antes sido uma objecção veemente a toda e qualquer produção artística profícua para a sociedade. Em crise. A crise. Crise geral, digo. Total e totalitária. Faltam ainda 1679 dias para o cessar fogo. Vieram decidios a matar e a morrer e aqui não há como escolher. Saltar para o tanque e esperar que as espinguardas fiquem vazias. São cinquenta as horas necessárias para a descoberta da verdade. Quais utopias, eu quero é ver o sangue, o nosso sangue a correr por esse amor apregoado. Ai! O delírio do vinho desfoca a imagem, o som da fonte ao longe, o discurso é metamorfose de alcool e desejo. Aqui e ali, mais recordações do amor e a voz incessante e ruidosa que insistia em discursos utópicos: partamos para a destruição do amor como o conhecemos; partamos para a destruição de tudo, procuremos o nada; que dái se reconstruam as casas, a memória e as culturas, que se atribua novo sentido à arte. Destruamos aquilo que foi mal edififcado, os canhões as balas as guerras por travar. E ali estava ele, em cima de um tanque de guerra com uma colher de pau na mão apregoando o amor, conquistando os ateus. Trazia um chapéu com rosas de papel vermelho e eram tão verdadeiras como o meu sangue. A fonte pinguava como o sangue da menstruação. Cá dentro ía doendo tudo. Quando finalmente sucumbia ao sono a lembrança dos 600 degraus até chegar a casa. As garrafas vazias não podiam ajudar ao equilíbrio. E no meio de tanta solidão, a descoberta da mão firme e viril que veio cobrir os dedos inertes pelo vinho. Abraços e mais abraços. Dois desejos cumpridos e uma moeda que não tornaremos a ver. Depois os outros, os que não estando lá eram afinal a fonte e o pátio. O sonho que não é utopia. Vieram com o vinho e por aqui ficaram. Os degraus e o vinho acabaram, a fonte já só se ouvia ao longe, menos um cêntimo na carteira. A crise da confusão do excesso e no fim da madrugada o encontro do batimento cardíaco justo e comum com as horas. A certeza de que o fogo não cessará enquanto o sonho não for cumprido. Na fonte, as garrafas vazias; o vinho no cimento.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Os revivalismos de Strindberg ou o reconhecimento da dor...

Amor eterno, dizias. Amor eterno.
Amor eterno, digo. Se bem que curto.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

O anti-manifesto que antes de ser censurado era só manifesto...

Era uma vez. Ontem. Éramos. Hoje. Ontem. Foi. Fomos. Somos. Somos manifesto. Manifesta. Grande festa. O festim. O banquete, o banquete dos loucos. Dos mágicos. Dos que magicam. Dos que fornicam. Somos inevitavelmente atraiçoados pelas águas paradas que nos cercam. As gerações amorfas contagiam inevitavelmente as vindouras. Lutar parece um movimento contrário à gravidade. Levantar a voz, fazer com que se ouça remete-nos para a ingenuidade sonhadora de quem quer mudar o mundo. Ao desejo de intervenção junta-se a urgência em dizer. Mas dizer só não chega, não chegam as palavras. A acção, no presente é o único meio de concretização da mudança. A única e derradeira forma de celebrar a existência e a arte. A banda foi convocada e o público acotovela-se nas varandas. Há homens pendurados nas janelas para assistir à grande entrada no prometido mundo novo, algumas mulheres lutam com o passado, há quem se desfaça dele e deixe tudo para trás, há quem festeje em rituais e há por fim, aqueles loucos, que se acreditam profetas. De nada vale entretê-los; de nada nos vale entretermo-nos. Antes o risco de provocar uma derrocada. Caia o circo e venha a morte, que tantas foram as vezes que já nos desiludimos com a esperança, com a prometida mudança, com as tentativas que nada trouxeram de novo. Na verdade, não há nada de extraordinariamente diferente entre uma grande festa de circo e um admirável mundo novo. Aquilo que se procura em ambos os lugares é a excentricidade, o desejo de prolongar a bizarria na memória dos espectadores. Um falacioso truque de magia ou a promessa da felicidade, são, encerrados dentro e fora de si, a mesmíssima coisa. O que nos resta? Qual é o caminho? A escolha prende-se à morte ou à intervenção. Deixámos para trás o mundo que tanto nos admirou e agora, que nos importam os desvarios épicos dos números de circo? Celebramos os fiascos do mundo através da música que ecoa na cidade. É a celebração das horas da infelicidade que nos faz sair à rua prontos a ripostar e de armas em punho.

É a hora, dizia o poeta.

É A HORA...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

O pessegueiro

Um dia, há muitos anos atrás, vi-te roer as unhas até ficares com a ponta dos dedos em sangue. A tua tarefa era interminável; esperava que te controlasses, mas havia um certo mistério nesse teu desmembramento da carne. Devia ter-te avisado; devia ter-te avisado que roer as unhas dessa forma podia causar-te dores verdadeiramente insuportáveis. Mas não pude porque o espectáculo a que assistia dava-me um certo gozo: ver-te a ti, naquela tarefa interminável de arruinar os dedos. Depois, dentro do balde que a mãe guardava debaixo do pessegueiro, já só havia sangue, o teu sangue, o sangue dos teus dedos enfermos. Deixaste tombar as mãos no rebordo do balde e olhavas para mim suplicante. Eu devia ter-te ligado as mãos, devia ter corrido violentamente para a caixa de primeiros socorros que sempre estava na prateleira da casa de banho. Mas não pude, não pude porque o espectáculo era deslumbrante. O balde de plástico baço reflectia o vermelho do teu sangue nas copas das àrvores. À minha volta ficou tudo com um aspecto encarniçado. E eu não pude, desculpa, não pude levantar-me para socorrer-te. Que moral era esta então que me fazia ficar ali, prostrada a ver-te sofrer? Moral nenhuma e isso também não era importante. As tuas mãos destruídas eram encantadoras. Havia pequenos destroços de pele que restaram agarrados aos dedos por finas membranas; das unhas nada sobrara. No lugar de dedos havia agora um conjunto de pequenas amputações. Que épicas eram as tuas mãos; que épicas. A mãe ao fundo chamava por nós, perguntava se estavámos outra vez a brincar em cima das àrvores. Gritei-lhe, disse-lhe que estava tudo bem, que era só um jogo da apanhada. E as tuas mãos, para ali deixadas a apodrecer devagarinho. Os teus olhos sorriram para mim, havia em ti uma confiança inacreditável como se eu pudesse resolver o teu crime que também era meu. Pergunto-me muitas vezes se terás tido medo de ver o sangue inteiro do teu corpo dentro de um balde. Pergunto-me muitas vezes se terá doido ou se simplesmente o sangue te embalou como a mim. Nunca chegamos a falar sobre o dia em que o pessegueiro ficou vermelho. Acho que a beleza da nossa pequena tortura foi precisamente essa. Testar limites: é isso; testar limites convictamente. Embora saiba que nunca me teria colocado no teu lugar. Nunca conseguiria destruir os meus próprios dedos em prol de uma imagem épica. Sempre me contentei por ser espectadora da desgraça. Até hoje. Incitei muitas revoltas e nunca fiz parte de nenhuma. Delicio-me com o que resta, com as amputações que sobram para contar a história. A mãe acabou por chegar. Chorava como um animal. Uivava com uma dor deslumbrante. Olhou para mim enfurecida, capaz de me matar. Não disse nada. E tu, permancias serena, serena, não escorria uma lágrima no teu rosto, nem no meu. A mãe pegou em ti e meteu-te debaixo da mangueira. Tentou lavar o sangue da roupa, das tuas mãos, dos teus cabelos. E não podia. Não podia porque o sangue já era tudo, dentro e fora de ti. A ambulância acabou por chegar. Acabaste por ir dentro da sirene. A mãe foi contigo. Deixou-me no jardim, por baixo do pessegueiro. Enquanto estava sozinha cantei aquela canção que sempre cantavamos quando estavamos bem. Cantei até ser de noite e o cheiro a sangue estar fundido no pessegueiro e no balde. Passaram-se anos sem fim, acabaste por recuperar as unhas, a mãe acabou por me perdoar, mas o balde manchado de sangue continua debaixo do pessegueiro. Nunca ninguém teve coragem para o guardar a tua tarefa interminável de arruinar os dedos...

segunda-feira, 23 de março de 2009

Vem buscar-me que não durmo

Acendo a luz porque desaprendi a viver no escuro. Saltava-me o coração para a boca sempre que o candeeiro do quarto adormecia. Desaprendi a viver no escuro porque era essencialmente controladora. Talvez não. Talvez fosse antes manipuladora das minhas verdades, à falta de desmembrar as verdades do mundo. Era crescida quando a luz se tornou fundamental para a minha sobrevivência. Estoirei os miolos muitas noites por não saber o que estava debaixo da cama: confirmar se as janelas estavam bem fechadas, certificar-me de que o quarto estava vazio quando me deitava, ligar todos os aparelhos que emitissem som ou luz para me manter entretida durante as horas em que o sono não se apoderava do corpo. Não era assim tão difícil. Quero dizer, ficar à espera que o sono chegasse. Não era difícil. Eram precisas horas por vezes. Horas em que continuamente me sobressaltava com qualquer pedaço de madeira que estalasse. Chamei muitas vezes pela minha mãe, pedi-lhe encarecidamente que me agarrasse a mão enquanto vislumbrava a morte chegar. Acho que era por isso que não desligava a luz. Tinha medo de morrer. Medo de morrer enquanto dormia ou simplesmente medo de morrer por ser tão nova e por ter muitas coisas para dizer. Que coisas? Não sei ao certo. Sei apenas que eram muitas. E isso bastava naquelas horas. Sabes como é? Imaginas? Horas, horas e horas durante anos em que a maior preocupação que tens é se a morte chegará naquele minuto, ou no seguinte. Chega até a haver um momento em que vives para não morrer. Em que essa é a tua única preocupação. Desejas de verdade ser imortal. Ser infalível. Ser melhor do que os outros, ter mais coisas para dizer do que eles. Desejas mesmo isso, de verdade. E não apagas a luz porque o medo acaba por alimentar a tua agonia. E sabe bem, sabe bem estar nesse rodopio de tristeza. Ter os olhos marcados a lápis de cor por umas olheiras tão fundas que quase consegues guardar as chaves de casa lá dentro. Sabe bem esse eterno retorno ao pavor das noites em branco e depois nunca mais te vais embora. É como descobrir um vício, como alimentar uma criança faminta. Acabas por desejar que o dia termine para te poderes confrontar com o minuto em que perdes a certeza da tua existência. É isso que te mantêm vivo. Imaginas? Imaginas como é? A única coisa que te mantém vivo é o medo de morrer. Se apagar a luz vou perder o espectáculo e eu comprei bilhetes para a primeira fila. Quero estar viva, mais que viva quando chegar a hora em que a noite me rouba os suspiros. Quero ter a imagem clássica de filme que roda os melhores momentos em câmara lenta com música de fundo que faz lacrimejar. Tenho direito a essas coisas, por isso não durmo. Por isso não há fim para o candeeiro do meu quarto. Imagina que ficamos todos à espera da morte. Imagina que ninguém apaga a luz quando se vai deitar. E imagina que por fim, a morte não chega nunca, para ninguém. Imagina simplesmente que te sobrou a eternidade para ficar à espera, à espera do fim. E se não chegar? E se os relógios se desfizeram ao sol? E se o tempo congelar? E se um dia restarmos todos no mundo, embora enfermos e doloridos pelas mazelas do tempo? Se a guerra não matar ninguém? Se viver for apenas o limbo entre aquilo que conhecemos e uma paragem cardíaca? É por isso que desaprendi a viver no escuro. Porque não posso ver a morte chegar. Porque cega não sinto dor. Porque cega engrandeço a desgraça. É mais fácil punir-me, punir-me por não querer morrer, ou por querer ver que caminho percorre a morte até chegar a mim. Nada disto é trágico sabes? Constato apenas a conservação do medo, de imaginar o caixão a ser esmagado e furado por quilos de terra. Isso não me amedontra. O que me exalta é saber que se apagar a luz não estarei presente para a grande viagem. De luz acesa sempre posso despedir-me dos livros, dos lençóis engomados e do sémen dos homens que me trespassaram furiosamente o útero. Quero ver esse nanosegundo em que me ceifam a respiração. Quero estar presente que é para isso que vivo. E se um dia morrer, quando morrer, estarei certa de que o medo traçou a minha estadia solitária no quarto e felizmente, ainda que morta, vou sentir-me integrada com a restante carneirada que como eu, viveu, vive?, à espera da morte. Contemplo o grande espectáculo, o derradeiro: o hálito da tua boca é quente, o teu sexo encontra a forma do meu. Despeço-me por fim. Adormeço. E novamente regresso à rotina da espera. Passaram o quê, vinte minutos?