quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A primeira parte dos pequenos prazeres da jovem incendiária

Quando acordei já as chamas tinham varrido metade do quarto. A metade que era minha. Ou a minha memória. A estante latejava em altas labaredas, as folhas desfaziam-se em cinza e o fogo ateado até hoje não sei porquê consumia os livros, os cadernos, os diários, os bilhetes de amor da tenra juventude até não sobrar nada que pudesse contar história. Fiquei deitada, imóvel na cama pronta a assistir ao espectáculo. O fumo já se fazia sentir nos meus pulmões que visivelmente diminuíam de tamanho a cada minuto que passava. Não estava assutada. Sempre houve , naquilo a que corresponde a minha ideia de identidade, um grande fascínio por ver coisas arder. Desde pequena que eram muitas as tentativas de pegar fogo a mim própria ou a coisas queridas. Por isso nem me esforcei muito para sair da cama. Não entrei em pânico. Não tive vontade de chorar por perder a estante. O calor daquele pequeno inferno montado no quarto era mais reconhecível que qualquer memória. Se esperasse mais uns minutos talvez o fogo se aproximasse de tal forma que eu pudesse tocar-lhe com as minhas mãos, fazendo-as empolar-se até a carne se sobrepor à pele. Não há dor mais agoniante do que as das queimaduras. Conheço-as bem, a essas dores. Tantas foram as vezes que me tentei incendiar. Em pequena lembro-me de despoletar a catástrofe por causa da cor, depois o mote incendiário foi mudando: havia dias em que simplesmente o humor o exigia, outros dias tinha frio debaixo dos abafos de Inverno do meu pai. Na verdade, bastava a corpo mudar de eixo para desejar violentamente pegar fogo ao mundo. Depois houve a altura em que era o corpo que incitava as revoltas: primeiro com o ferro de engomar e as mãos marcadas pelas queimaduras, depois o forno e as travessas que aqueciam demais, depois as panelas de água a ferver, mais tarde as velas que tombavam acidentalmente sobre a barriga. Foram longos os anos que passaram até ter impresso na pele a memória de todas as extravagâncias. A mãe e os professores espantavam-se com tanto acidente. Os homens com quem me deitava lançavam olhares piedosos sobre as cicatrizes. Havia um certo divertimento, digo, para mim. Neste jogo de pena incrédulo que me lançavam os estrangeiros. Nunca ninguém suspeitou dos meus vícios incendiários. Nem mesmo quando a àrvore de Natal pegou fogo na casa de férias dos avós.
No Inverno acendia-se sempre a salamandra. Ficava dias sem parar sentada em frente ao fogo que consumia as madeiras secas da garagem. Até o fumo fazer os olhos arder. Até já não se poder ver. Até o corpo suar tanto que parecia Verão. Até caírem lágrimas perante o espectáculo. Mas desta vez, desta vez a culpa não era minha. Não tinha sido eu a incendiar a estante e estava por isso muito agradecida a quem quer que tivesse despoletado esta incrível visão.

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