quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Isto é um mar de chatices. Como aquele mar onde o Tejo perde os filhos. Juntos para a desgraça: estamos juntos para a desgraça. Unimo-nos para não fazer bem e isso não significa que a queda nos faça partir a cabeça. Vai só deitar um bocadinho de sangue e nem vai doer nada. Isto é um grande mar de chatices. A parede está intacta e a verdade é que temos coragem de lá ir com a cabeça, errar e perder. Corremos esse risco porque compreendemos a causa, como os revolucionários: a luta a ser travada é clara e precisa, quase cirúrgica. Para ver as raízes não foi preciso escavar até muito longe, o encontro deu-se com facilidade. As raízes porém, em tão curto tempo e tão ousadamente cresceram até partirem o cimento e a calçada. Isto é tudo um grande mar de chatices e essas raizes sao fruto de um compromisso assente na possibilidade da queda. Cair é das sensações mais alucinantes que se pode ter: não saber como vai acabar o corpo, cair até esmagar o coração. A inconstância é poder cair a toda a hora, esmagar os ossos todos e estar pronto para cair de novo. Haverá sensação melhor?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Suor e consequências

Está calor. As coxas suam. Tu pareces um cadáver pálido, sem boca nem norte; sem olhos porque foram comidos pelos ratos. A visão enevoada da tua cara faz-me pensar que perdi o discernimento. Sabes como me chamo, ou és apenas um cadáver roto na minha sala? No outro dia perdi o teu nome. Estava no bolso, no meio da papelada inútil que se acumula nos bolsos e acabou por ir tudo para o lixo. Também não me fazia falta. Saber o teu nome porquê se nunca mais te vejo na vida? Caíste do barco com tanta exaltação em que fervias sobre a mudança e a fé. Como não tinhas nenhuma foste traído pelo entusiasmo. Que te tenha sabido bem o banho, melhor a aflição. Tu e o teu nome perdidos para sempre: na lixeira e no mar alto. Não te dá vontade de rir? De rir comigo quando penso nestas coisas? Tu fazes-me rir quando me beijas a cara com pressa, como uma criança que nunca beijou uma boca. Mas eu conheço-te malandro, tu e a tua canção de mariola. Pensas que me enganas falando da liberdade quando já se envelheceu tudo? Não. Conheço bem a tua canção de mariola, já disse. E ainda assim, não deixas de parecer um miúdo quando me beijas a cara com pressa.
Está calor. As coxas continuam suadas. Como depois do sexo. Agora diz-me, quando te encontrarem a boiar junto à costa saberão que fui que te empurrei? Saberão isso porque me beijaste antes de cair? Ou saberão simplesmente porque sim, porque essa seria a única possibilidade? Cúmplices na tua ou na minha desgraça; no teu ou no meu desejo? Tantas mentiras e nem por isso menos entusiasmo. Serias capaz de nadar se o mar fosse de verdade ou ias deixar-te afogar como fazem os fracos sem sangue? Bebeste o que restava do meu porque o fui doando a todos os que passaram. Já não tenho sangue, nem cabelo, nem palavras na boca para as dizer. Só tenho calor e mesmo que me tente lembrar do frio do chão de tijoleira nas minhas costas o calor não passa. Como se fizesse amor contigo há muitos dias, anos talvez, sem nunca parar. Nem para cigarros. Fumo quarenta por dia, sabes? Por isso é que a boca amarga quando me beijas. Não me pedes nada e entre nós isso é recíproco. É, na verdade, a única coisa bonita que tivemos juntos. Nunca pedimos nada um ao outro. Mesmo quando a tua palidez te fez desfalecer na minha sala.
Está calor. Tenho as coxas e as mãos suadas. Escorrega-me tudo. Já parti dois pratos: o que devias ter levantado antes de morrer e o que eu devia ter levantado antes de morreres. É esta porra deste calor que faz cair tudo das mãos. Até tu que estavas nos meus braços me caíste à água. Eu pensei empurrar-te mas não quis empurrar-te, percebes a diferença? Por isso, posso dizer que me escorregaste por causa do calor e do suor das mãos. Ou achas injusto? Tu que me bateste com esses braços de homem forte mil vezes sem nunca deixar marca; tu que me deixavas à espera durante a noite para que talvez chegasses, pálido e suado de outras mulheres? Eu sempre soube que daí vinha pouca coisa, ou nenhuma sei lá. Mesmo naquele dia em que corri por causa da faca, vieste salvar-me? Deixaste tudo para me proteger? Nunca. Eu que me salve sozinha que se já posso dar beijos na boca também posso defender-me. Deves ter tremido de entusiasmo só ao imaginar a faca a trespassar-me a pele. No meio dessa miragem viste algum sangue? Diz-me camelo se viste algum sangue, porque se viste o meu não era te garanto. Bebeste-o todo porco! Tinhas sede porque estava calor e vá de beber o que era meu.

Mãos de amor

Há uns dias olhei para as minhas mãos. Eram jovens e vigorosas. Tinham poucos traços porque conheciam poucos homens. A memória das mãos é a mais fidedigna. Hoje, quando olho para as minhas mãos vejo trabalho calejado, tremores até à boca por não conseguir alcançar os cigarros. Passaram tão poucas horas entre conhecer apenas um amor e depois tantos que de amor não têm nada. O que é que eu fui fazer... Como vim eu aqui parar, a este sítio onde as mãos tremem e suam; onde o amor é um sonho mal concretizado?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Cacilhas às 02:00

Revoluciono-me. Sem adolescência nem jovialidade. Revoluciono-me por reconhecer como algumas coisas funcionam por serem coisas do mundo. Deixei de ter medo de morrer para passar a ter medo de foder. Por isso a revolução acontece não fora, na rua, mas dentro, nas veias. A revolução não-adolescente, não-adulta é apenas a concretização das horas que passamos juntos em deambulações extravagantes impulsionadas pelo vinho dos amigos indianos. Tantas horas e tanto vinho, tantas conversas de mudança, de arte sem arte. E depois aquela viagem até Cacilhas, quando a noite rebentava já em horas altas e o Tejo era frio e ventoso. Estávamos encostados às quinas do barco, como num filme onde as personagens parecem parar para pensar nas horas que passaram. Eu ali, encostada, no Cacilheiro último que partia de Lisboa, lembrava-me de como teria sido bom partilhar aquele pedaço de fita com uns tantos ausentes naquele pedaço de quina. A luz, em Cacilhas é sempre diferente. E isso já dizia a amiga Catarina que voltou há pouco do Brasil. Cacilhas é diferente porque tem um farol. Eu serei diferente porque estive em Cacilhas.
E com tantas coisas que quero sempre dizer, hoje fiquei sem pio!