sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Marcha fúnebre

Não conheço este lugar. Não conheço este lugar onde não há medo. Não ter medo é assustador. Não é este o lugar onde me materializo. O meu corpo está desfasado do espaço, eu estou desfasada do tempo. Nem sei ao certo quando aconteceram todas as coisas que me deixaram de luto. Parecem meses, anos e foi tudo ontem. Foi apenas ontem que vivi todas as coisas que constroem a minha memória funerária. Não me pertenço em nada daquilo que são os meus gestos e os lábios conduzem-me geralmente a palavras que não são as da minha boca. Fico à espera das horas em que o alívio me conduz ao prazer de continuar viva perante a catástrofe. Não há nada de trágico nesta procura, são só inspirações para o devaneio artístico. Não há nada a fazer em relação à minha tristeza: ela não é complexa nem fruto de uma miséria insuportável. E talvez se assim fosse, qualquer explicação seria mais racional do que este caminhar lento para a inércia. É preciso trabalhar, fazer as coisas. Nada mais há a fazer quando deixamos de nos reconhecer.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A invenção das portas e outros problemas

A minha casa, apesar de tudo, não tem portas. É uma casa sem portas e com duas varandas corridas que dão para o Tejo, muito embora o Tejo esteja a três quilómetros de distância. A minha casa é um sítio inventado onde há um parede totalmente preenchida por livros que eu ainda não li e os outros, já lidos, estão guardados na pequena arrecadação nada sombria, ao contrário das arrecadações vulgares. A minha casa costumava estar cheia de pessoas, que bastava serem pessoas para poderem estar na minha casa. Ás vezes não eram amigos, não eram amantes, nem o pai e a mãe, a irmã e a restante família alargada. Eram só pessoas que entravam na minha casa ampla que não tinha uma única cadeira e se sentavam para lá falando das coisas que geralmente as pessoas falam. Era só uma casa a minha casa; era só uma casa. E lá dentro havia lençóis engomados e roupa lavada e fresca. Havia às vezes muita luz quando se abriam as janelas e essa luz era o encontro das palavras fecundas. A minha casa que era só uma casa era estruturada e mesmo quando havia ventania lá fora, os pilares não cediam nem sequer tínhamos medo. Muitas vezes havia vinho no chão e alguns cigarros apagados em cinzeiros improvisados. Isto porque a minha casa tinha sempre muitas pessoas que eram só pessoas dispostas a trocar palavras fecundas enquanto se sentavam no chão da sala. Um dia, quando puseram portas na minha casa, as pessoas morreram todas. Não havia pessoas, nem amigos, nem amantes, nem pai e mãe, irmã e família alargada. Quando a minha casa nasceu de novo com portas restou uma única criatura no mundo, que ainda hoje não sei bem se era pessoa ou se era só criatura. Talvez tenha sido essa estranheza o motivo pelo qual esse ele permaneceu vivo para além de todos os outros seres e de mim mesma. Talvez tenha sido essa estranheza que o conduzira à única casa com portas cujas varandas abraçavam o Tejo longínquo. Essa criatura era, ainda que sendo ou não pessoa, um homem cujo nome ainda hoje desconheço. O homem que me invadiu a casa e os lençóis engomados. Com ele, as conversas não eram fecundas. Talvez fosse o amor. O amor fecundo que gera, na maioria das vezes, outras criaturas com características quase semelhantes àquelas que têm os que as geram. Mas mais uma vez, nem essa era a fertilidade que fazia o homem entrar na minha casa. Os cabelos dele cheiravam a areia e sol. É muito provavelmente a recordação mais nítida que retenho na minha cabeça. Areia e sol. Talvez esse não fosse o melhor cheiro do mundo, mas era o cheiro daquela criatura única que permanecia viva no planeta para além de mim. Não estou certa do motivo que nos uniu, muito menos certa das razões que levaram à nossa sobrevivência após a calamidade das portas. A verdade é que muitos pássaros ficaram vivos, nos museus a arte não derreteu e todas as grandes superfícies tinham prateleiras cheias. Agora quanto ao facto de estarmos vivos e ainda por cima vivos na minha casa que outrora fora um porto de gente, não tenho qualquer justificação. Parece-me que aquela coisa a que chamamos fé tenha sido a única razão, racional entenda-se, para a sucessão de acontecimentos tão bizarros. Um dia quando acordei na minha casa com portas a criatura tinhas as mãos ensanguentadas e desenhava na parede memórias daquilo que devia ter sido a sua infância. A ironia daquela visão entristeceu-me. Um homem partia das suas vísceras para reescrever um passado inóspito. E ainda assim, invadia todos os compartimentos com o mesmo cheiro de areia e de sol. Mesmo agora que o homem já não está em minha casa, é esse o cheiro que está impregnado nas paredes. O homem já não está na minha casa porque morreu. Matei-o, sim a verdade é essa. Matei-o com as duas mãos e um bocadinho de fita cola que guardava dentro do armário da cozinha para emergências. Mas isso foi depois de muitos anos, não sei ao certo quantos, porque um dia eu e o homem decidimos não sair da casa que era minha e, estranhamente, agora era também dele. Para ali ficaríamos prostrados: ele diante das paredes abrindo todos os dias mais uma veia par poder terminar o seu mural; eu sentada diante da visão irónica que era aquele desmembramento. Acabámos por criar alguma intimidade neste jogo. Nem sempre dormíamos. Raras eram as vezes em que comíamos. Até porque, como tínhamos decidido por maioria, não voltar a sair daquela mesma casa, tínhamos de ser poupados. Não conversávamos. Talvez não houvesse assunto, continuo na dúvida... Um dia quando acordei, o sangue dele tinha acabado e por esse motivo, calculo, tinha parado de desenhar a parede. A obra de arte estava em fim terminada. Então, quando me viu sem nada para observar ao fim de tantos anos naquela mesma ciranda, ouvi-lhe a voz pela primeira vez: "Era bom se nos pudesses deitar juntos". Foi então que o matei. Matei-o. Porque antes de todas as outras pessoas que eram só pessoas terem morrido todas, já eu me tinha deitado com muitos homens e sabia bem como era mentira que assim se construía uma intimidade. Sem nunca conhecer a criatura com quem vivi mais de metade da minha vida, consegui amá-la mais do que a qualquer homem que se tenha deitado comigo. Então, como não queria romper o compromisso que tinha estabelecido com aquele homem e com a sua fé, matei-o com as mãos e os restos de fita-cola que deixava guardada na gaveta da cozinha para casos de emergência. Matei-o e não houve grande problema, porque na verdade não havia pessoas vivas que me pudessem punir. A solidão era agora a única realidade plausível. Estava sozinha no mundo e na casa, mas pelo menos tinha vista para o Tejo. Passei o resto da vida que me sobrou a observar o mural da infância do homem e descobri que a intimidade é a circunstância mais dolorosa dos seres humanos. Para disfarçar a solidão que sempre fora uma temática assustadora na minha perspectiva de pessoa, passei também eu a desenhar na parede. Com o meu sangue desenhei todas as pessoas que estiveram na minha casa e quando finalmente decidi desenhar o homem o meu sangue tinha secado. Seca. Estava seca para desenhar o único homem com quem tinha partilhado a intimidade dos anos. Então, com o último pedaço de fita-cola que sobrara do meu primeiro crime, atei as duas mãos, sentei-me na varanda corrida e fiquei à espera da morte.

sábado, 22 de novembro de 2008

Os inevitáveis encontros de Maria e José: o corpo desumano do amor

-J: M tens o corpo dilacerado pela brutalidade do trabalho: negrume fundo nos apoios, traços de sangue nos pés e umas unhas cravadas em rasgão bruto em cada uma das omoplatas. O teu corpo está consumido pelas dores de quem não pode parar, pelas dores de quem vê no trabalho árduo a única emergente saída para a solidão. M, porque cobres tu o corpo todo com trapos pretos? Essas são as tuas angustias transformadas em carne cortada. É a minha tese. A minha tese sobre a tua tristeza. Quando te encontrei, os teus olhos denunciaram a morte acumulada dentro das tuas mãos e dentro do resto das coisas que permanecem estanques e seguras no teu corpo. Não esperavas ver-me? A verdade M, é que não te amo. A verdade é essa. Mas não sei que coisa amarga é essa que sempre trazes contigo que me vicia. Deixa-me tirar-te a roupa, descobrir as tuas dores.

Silêncio

M...? M...? Deus roubou-te as asas e as tuas costas sangram como rios. Deus roubou-te as asas e só por isso posso ficar a olhar-te durante horas, fazendo dançar os meus dedos sobre os rios trilhados pelo vermelho que te marca a pele virgem. As minhas mãos côncavas vão aninhar-te as feridas. Foi um homem, fui eu quem te traçou a pele? Fui eu que violentamente conduzi as minhas mãos contra o teu corpo, esperando quem sabe que alguma coisa ficasse da dor? Podia matar-te agora que nenhum de nós saberia porquê nem como se chega a um acto tão bruto. Podia matar-te, esmagar-te contra uma parede e ninguem saberia que ousámos cometer o crime do amor. Penso tantas vezes na morte, pequeno anjo. Imagino um corpo, sufocado debaixo de quilos infinitos de terra. Não existe ar, nem nada que possa alimentar a corrente das veias. Imagino o teu corpo suterrado e as tuas asas minusculas partidas junto das ossadas dos antepassados queridos. Não me interpretes mal, M. Esta é a única forma de amor que me mostraram: é esta a única visão sanguinária que tenho de um coração inflamado. Mas onde fica o meu corpo se morreres? Qual é o lugar, M? Perpetuaria, se pudesse, aquele segundo em que adormecemos no sofá. Cheiravas a banho acabado de tomar e os teus cabelos pingavam no meu peito. A luz que atravessava as janelas era quase efémera, quase nada. Ficamos embalados pelo tinir do vento e das tábuas centenárias e eu desejei mais uma vez matar-te... Agora morrer contigo. Matar-te e morrer no instante da acção, sem dissolução, sem mistério. Só para poder perpetuar aquele instante em que adormecemos no sofá. Porque essa paz, essa fé no amor, não a consigo encontrar em mais lugar nenhum.

És a minha casa M.