terça-feira, 9 de março de 2010

Os doidos não-clínicos

Não tenho nada para dizer. Não tenho nada para dizer, já disse. Mas as mentiras são maiores. Porque há sempre alguma coisa para dizer, há sempre material para afirmar: dizer que não quero é por si só a afirmação de um não-desejo. Desejo que paro de chover, dizia ela. Esta mulher, no meio da tempestade, falava dos filhos feitos e da teimosia da chuva impertinente - como as crianças. Desejo que pare de chover, dizia ela. A janela acordou brilhante, desviada da chuva que esfria a pele. A chuva faz-me lembrar os homens - os homens que estão esquecidos naquele passado já enevoado, sabe? Aqueles homens que deixaram de ser história. Como o José da Maria, lembra-se? Deixou de ser louco e de corromper a carne com vinho azedo. Deixou de se enfeitiçar com as palmilhas gastas dos sapatos das menininhas virgens. Deixou de ser história, por isso. Já não tem nada para dizer. Regressou à impossível normalidade dos que vivem bem e felizes. Eu devia regozijar-me, sabe? Devia felicitá-lo pela conquista. Mas não posso, não foi assim que o conheci e agora é um estranho. Um estranho que deixou de ser um desafio, um desvio dos dias curriqueiros e simples. Estará ele feliz por ter conquistado essa paz? Foi tao brutalmente seringado, o rapaz... E aquele outro lembra-se? O que atravessava o Tejo no cacilheiro último com destino a Cacilhas? Está casado e tem dois, três filhos... Será possível? Passou tão pouco tempo. Meses tão curtos. Transformou-se. Tem uma casa e até paga as contas. Os deveres em dia. Estrangeiro, esse homem. Ele que sempre me dizia tantas coisas estranhas sobre a vida. Agora são só memórias e nada para viver. Até cortou o cabelo. Quer dizer, ele viverá as suas aventuras, mas para quê? Eu pensei que se esgotassem as coisas para dizer se eles desaparecessem, pensei que voltaria a tornar-me também eu nesse homem simples. Mas não é fácil, sabe? É uma doença da pele esta coisa de querer viver o mundo de enfiada. Amanhã não é outro dia. Amanhã é o futuro e o futuro a Deus pertence, pois então. Não posso ser um homem jovem que se levanta ao meio dia e toma o café na cama. Não posso ser o homem cumpridor dos deveres impostos. Eu sou um homem doido. Quer dizer - não me interprete mal - um homem doido inofensivo. Mas não tenho mobília em casa, é um espaço acéptico e formal. Desprovido de pessoalidade. Também não me lembro da infância ou da impertinência de ser adolescente. Lembro-me tão somente dos últimos três anos. E não pense que sou doido, desses doidos clínicos que engolem frasquinhos de químicos. Não sou demente. Sou só um doido esfomeado. Não me lembro das coisas que disse e não tenho muitas opiniões sobre o mundo e arredores. Sou simplesmente um entusiasta dos pormenores, do excesso e da desgraça. Não sou um homem velho devasso nem um adolescente insolente. Sou um homem excessivo e de boca amarga. Sou um homem sem história. Isso incomoda-a? Transtorna-a? Não fique pensativa... Não é assim com toda a gente. Não temos todos de desejar a solidão. Eu desejo-a com convicção. Há muitos assim como eu, sós. E se pensar bem não há um desnível assim tao grande entre estar só ou acompanhada. Pior se estiver mal acompanhada. Não sou o primeiro homem a falar-lhe de solidão, pois não? A menina tem uma pele tão branca e olhos tão escuros. Não, não recue. Isto não é a canção do mariola. Não estou a seduzi-la percebe? Mas é raro encontrar uns olhos assim tão pretos e tão fundos. Dorme pouco, a menina? Parece não haver fim para esse negrume que lhe circunda o rosto. Não me leve a mal, sou um doido daqueles que não são clínicos. Não há nada que deva temer. Mas estou terrivelmente só. E isso não me incomada, perceba. Mas às vezes é bom desviar-me da vida acéptica do meu quarto e olhar para algumas caras. A menina está só? Espere, não precisa de responder. Posso calcular que não. Posso calcular que esteja simplesmente acompanhada. E tem memórias com certeza. Lembra-se da sua mamã? Bordava-lhe camisolinhas de renda? Tem cara disso, a menina. Pele branca, olho escuro e camisolinhas de renda...