terça-feira, 27 de julho de 2010

Aves raras

Misturamo-nos nos copos de vinho pervertidamente divididos em que a saliva se toca sem darmos conta, em que se passam as histórias da vida sempre tão heróicas nas nossas bocas, onde se mistura o sabor acre dos dedos fumadores com a frescura da noite que assenta nos telhados das casas. Misturamo-nos. Pervertidamente porque a vontade é inusitada. As mãos feitas dos mesmos calos e o sangue das feridas que pingam no linho branco da mesma maneira. As manchas do linho e dos copos que são a mesma. Nas orgias das palavras o entendimento supera o coração, a liberdade a crueza dos dias. As palavras que se misturam nas bocas como o liquído dos copos de vinho. As mazelas são as mesmas. Os mesmos tombos no quintal, os mesmos verões abrasadores marcados na pele, a mesma sede de ver o mundo como uma viagem num comboio rápido. Os desenhos da liberdade traçados nas bochechas: o homem que matava galinhas no México, a mulher que se fazia passar por morta à hora em que o marido regressava do trabalho, a outra mulher que dormia ao lado do cão de louça, os putos do skate que faziam pactos de sangue na Expo, as virgenzinhas desejando o sexo e aqueles míudos, por corroromper, que trocavam cartões eróticos nas mochilas. Era assim a nossa cabeça, a minha e a tua, mas que às vezes era só uma. Uma gigante cabeça insuflável que tomaria sempre o caminho mais distante para casa. Aquele em que mais gente se cruzaria nunca ficando, aquele que fazia a manhã levantar-se algures nas sarjetas. A minha e a tua cabeça flutuante, flutuando como um helicópreto por cima das piscinas municipais cheias de mijo e dos piqueniques gordurosos nos pinhais. Mas às vezes passavam pássaros que nunca tinhamos visto. Pássaros raros: como aquele bando de mitratas verdes . E nós de gaiola na mão tendando roubar-lhes as asas. Para as pormos nas nossas camisolinhas de alças em linho. E depois o nosso sangue que pingava e as manchas uniformes que deixava no passeio. Manchas como ovos mal estrelados. E não é que te conhecesse há tantos anos assim. Já tinha passado a puberdade certamente. E nisto a nossa pulsação sempre incólume. Sã e salva das nossas loucuras, das noites violentamente roubadas ao sono, da espontaneidade das palavras, do olho clínico dos observadores estrangeiros. Que dor de barriga me dá este riso. Este riso que me faz recordar-te. Fura-me. Como um pau de madeira aguçado. Fura-me os olhos. Como os do Édipo. O que cegou, estás lembrado? Ele também esperou sair incólume dos seus crimes: porque não os conhecia e porque talvez se julgasse mais limpo nos seus procedimentos. Será que lhe doía a barriga? Alguma vez te doeu a barriga? Como se fosses explodir, não só a tua barriga mas o teu corpo todo a derreter-se nos poros? E só porque te rias, só porque te rias como as hienas e os abutres. Os abutres comeram as mitratas, lembraste disso certamente? Ou fomos nós? Fomos nós que comemos as mitratas irrandiando liberdade? Teremos perdido o pudor? Perdemos não há dúvida, mas antes ou depois da puberdade? Terá tido pudor, o Édipo, quando fez deslizar a túnica de organza pelos ombros da mãe? É esta a liberdade, a tua e a minha liberdade e a nossa cabeça insuflável gigante? Um dia, e temo que possa mesmo ser hoje, agora, vou-te pespontar na minha pele, ponto por ponto. Quando regressar a casa posso não voltar a ver o bando de mitratas verdes mas estarei certamente mais próxima do amor.