domingo, 28 de setembro de 2008

Cabelos em flor

Um dia, quando não tiver bloqueios vou ter tanto cabelo como a parede tem flores. Esse dia tem de estar perto.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Inspirações performativas: 1º tentaiva

Ideia criada a partir de
Anjinho da Guarda, António Variações in Anjo da Guarda

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A (fe)sta: os inevitáveis encontros de Maria e José

M segue J. O silêncio é mortal, principalmente porque toda a cidade em redor de ambos mergulha no mecanicismo do murmúrio de milhões que se movimentam em magote e esgrime as angústias de uma existência cosmopolita. J não tem palavras para partilhar, sente-se esmurrado pela impossibilidade da linguagem; M queria dizer-lhe muitas coisas, palavras não lhe faltam, sente-se esmurrada pela falta de um receptor activo. O caminho que os espera é longo e a comunicação ausente exalta-lhes os espíritos. M sente-se triste. Triste. Apetece-lhe desistir, apetece-lhe não continuar o trilho a que se propôs com aquele homem, quase estranho. M sente-se em perigo de morte. Conhece bem as armadilhas do amor fundo. J, por seu lado, está disposto a confessar-se-lhe: a capela está perto, em breve, juntos e em silêncio reencontrarão o Deus perdido, o Deus roubado. Movidos pela fé, sim, obviamente movidos pela fé no amor em guerra que explode à flor da pele em delírios secos, M e J, desacompanhados um do outro embora lado a lado, descem a rua a pique que confluí num beco sem saída. À esquerda desse beco, um pequeno edifício de betão, sem qualquer espécie de identidade. M questiona se será aquele o sítio onde descobrirá a intimidade de J: aquele espaço demasiado impessoal pouco poderá trazer de transcendente: a transcendência era aliás uma das suas grandes necessidades. J empurra a porta deste mini-edíficio city-suburbano. Entra. M segue-lhe os passos. O interior da capela é absolutamente nu. Paredes de betão como no exterior, no chão uma alcatifa gasta e algumas almofadas espalhadas aleatoriamente. Não há um único santo para que M se renda e possa rezar. São apenas sete as pessoas no interior da sala. Com M e J, são agora nove. Um dos homens que se encontra sentado nas almofadas usa batina. A sua voz ressoa nas paredes. M sente-se intimidada: o discurso é-lhe quase imperceptível, mas em poucos minutos sente a convergência dos crentes em Deus. É a pura espectadora de um cenário de união perante uma força maior que lhe é estranha. Para J, M tinha roubado a capacidade de interacção com a convergência daquele minúsculo e bizarro grupo. Levá-la lá era, acima de tudo, um acto de amor. J decidira partilhar com a desconhecida o seu Deus, a sua fé. Não esperava de todo recuperá-los; sabia bem que para sempre tinham sido levados por uma mulher. M sentia-se comovida: o ritual incomodava-a, fazia-a sentir-se cúmplice de uma qualquer espécie de alienação. Uma mulher levanta-se. Canta. Canta chorosa. Canta o desamor e a guerra, canta os filhos mortos e as mãos calejadas do trabalho. M soluça. M perde o controlo, está definitivamente envolvida. A expressão está absolutamente fixa, as lágrimas escorrem automáticas pelo seu rosto. M volta soluçar. Nunca tinha ouvido nada assim, tudo no corpo daquele mulher-cantora eram angústias mal talhadas e dores de parto com filhos por nascer. Que força era aquela força que a fazia sentir-se pequeníssima? Que força era aquela que a deixava prostrada e pronta a render-se a um Deus? Que Deus poderia tê-la chamado? Para M não havia Deus senão aquele que tinha roubado involuntariamente a J e que não desejava conhecer assim tão de perto. Que Deus perdoaria esta dose de humanidade? A mulher-cantora senta-se. A sua boca está seca e fechada. Estava findo o encontro. J olha para M; M está desfigurada, esta expressão não lhe pertence. Começa um novo aprender, um novo começar. J levanta-se em silêncio, M segue-o em silêncio também. Vão regressar à cabine telefónica, muito embora sejam incapazes de expulsar uma palavra entre os lábios. Sabem simplesmente que é esse o caminho e reconhecem claramente o acto de amor a que se tinham exposto: J revela o segredo, M revela a sua impotência perante a revelação. O amor devasta-os, os corpos estão doridos, doridos de uma dor física, cansados de uma viagem que consumiu os músculos. A festa do amor manifestou-se: M e J amaram-se dentro da pequena capela, descobriram a intimidade. Caminham de novo para a cabine. A chuva continua a cair. Estão encharcados, talvez de lágrimas. Depois do longo trilho travado sempre em silêncio, chegam à rua da espera, da comunicação em bruto. A cabine está vazia: refugiam-se nos dois metros quadrados de fé. O auscultador do telefone está fora do descanso. Ouve-se um (piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii) contínuo. Abraçam-se. Dançam devagarinho, quase nem sequer se mexem. A fé moveu os seus corpos para a (fe)sta.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

brincos - de - princesa

O Dali pensou na boca, depois na cara e depois num sofá que é uma boca. O Dali pensou no sofá-boca. O sofá transformou-se num ícone. O ícone transformou-se em merchandising. O merchandising são uns brincos sofá-boca. A princesa posso ser eu. O Zé pensou na princesa e ofereceu-lhe os brincos sofá-boca.


A história dos brincos de princesa
FIM

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Questão irresolúvel: o que é a performance?

A arte da Performance - Roselee Goldberg
Bom começo para o esclarecimento de algumas dúvidas


Iniciei ou re-iniciei as minhas andanças teatrais no pequeno yellow submarine. Não estou especialmente feliz com aquele espaço, mas estou absolutamente disponível para trabalhar, aliás estou absolutamente com vontade de o fazer. Quero envolver-me à séria, como diria o outro...
No meio de todas as implicações burocráticas que implica o recomeço de alguma coisa, fui agradavelmente surpreendida - e ainda não sei se é este o adjectivo - pela questão/desafio a que me vou propor neste início de fim de percurso académico: o que é a performance?
Durante os próximos dois meses vou andar mergulhada nesta temática, muito provavelmente explorando perspectivas do ridículo, do sério, das convenções, dos rótulos, das possibilidades, dos limites e das multidisciplinaridades artísticas presentes nesta forma de fazer teatral (? - mais uma vez não sei se é esta a palavra a ser utilizada).
Estou assoberbada de dúvidas relativamente aos próximos meses e não espero ver respondida nenhuma questão de forma estanque; espero antes encontrar caminhos para possíveis respostas. Hoje, pela primeira vez há muito tempo, senti que ter expectativas sobre as coisas não é necessariamente uma coisa negativa; pode ser antes um estímulo, neste caso para a criação artística.
Estou carregada de vontade de trabalhar e carregada de medos: espero não enlouquecer com ambas as coisas. Se bem me conheço a faceta workaholic vai manifestar-se e os medos vão ser, em ocasiões cruciais, preconceitos quase impossíveis de ultrapassar. Gostava muito de me comprometer dizendo que não ultrapassaria os limites do razoável em nenhuma das situações.
Na verdade, hoje, agora, quero mesmo começar a trabalhar...

domingo, 21 de setembro de 2008

Dois metros quadrados de fé: os inevitáveis encontros de Maria e José

J caminha em direcção à cabine telefónica. Caminha devagar, invadido, pela primeira vez na sua vida, pela sensação de jogo perdido ou a perder. Nunca na vida teve nada a perder, absolutamente nada. Era a primeira vez que havia alguma coisa verdadeiramente importante em jogo: uma espécie de amor impossível ou inevitável, uma fé roubada por uma estranha que agora amava, um Deus perdido. Eram muitas coisas que J podia perder e era muito pouca a vontade que tinha em viver sem elas. J caminha devagar, J está abandonado.
M está na outra ponta da cidade, desconhece a vontade de J em revê-la; conhece porém a necessidade quase mórbida de o reencontrar. A cabine telefónica onde esperara já uma vez é o único espaço possível para o encontro, é também o único espaço que apesar de tudo lhes era íntimo: mais do que a rua estreita onde se cruzaram brevemente pela primeira vez. Aquele espaço de comunicações em bruto, era o espaço onde a fé de ambos tinha sido depositada, era o único espaço possível para o amor de M e J.
M caminha em direcção à cabine telefónica. Caminha devagar, invadida, pela primeira vez na sua vida, pela sensação de não ter nada a perder. Tivera muitas coisas felizes na sua vida, tranquilas porém: nunca M tinha entrado em ebulição. Era por isso, também, a primeira vez que havia alguma coisa verdadeiramente importante em jogo: um homem perturbador e sujo, a posse de um Deus que não lhe pertence, a fé nas pessoas, nos seus compromissos com a vida e com o mundo. M caminha devagar, M tem esperança.
Mais uma vez, o cosmos trabalha em prol deste encontro inevitável. Desconhecendo caminhos alheios, M e J vão encontrar-se na cabine telefónica; vão encontrar-se pela segunda vez movidos pela fé que têm; pela fé que têm um no outro. Na mochila de M está a sua máquina fotográfica; na de J o avental ensanguentado do restaurante. Chove, dia de quase-Inverno.
J chega à cabine telefónica. Entra, protegendo-se da chuva. Está determinado a ficar à espera de M. M não tarda a chegar.

-J: (em sussurro) Aparece M, aparece. Estou aqui como te prometi. Foram umas horas, uns anos?, de atraso. Vem M, corre para os meus braços. Não há tempo, pois não M? Partimos todos os relógios das ruas da cidade, des-sincronizamos as horas, os sinos nas igrejas já não tocam. Aparece M, aparece que te vou contar os meus segredos, vou levar-te a um espaço que é só meu e que depois será nosso. Vou levar-te ao espaço que é a minha casa e ao qual não posso regressar enquanto não me devolveres a memória. Esqueci o caminho M. Aparece para que eu possa regressar.

M entra na cabine telefónica. M e J estão apertados, reduzidos a menos de dois metros quadrados. Os vidros ficam embaciados com a respiração de ambos. Não há muitas palavras que possam ser ditas; apenas surpresa pelo re-encontro não combinado. Suspensão. Ataque de M.

-M: Estás aqui.

-J: Consegui cá chegar. Quantos anos passaram M?

-M: Dez, talvez vinte. Umas horas, poucas. Não sei. Não há tempo, será assim?

-J: Não sei como é. Levaste tudo o que tinha na mala, só resta o avental cheio de sangue. Se o tivesses visto, tê-lo-ias levado, estou certo que sim. Levaste tudo M, levaste tudo e eu não corri para te apanhar. Agora sou eu que te levo M, vou levar-te até onde te quero levar. Vens comigo, M? Vem comigo, que são só segredos, só histórias. Nada mais.

-M: Vou contigo J. Não me peças que vá. Iria mesmo que não mo pedisses. Fiquei horas à tua espera nestes dois metros quadrados. Horas à espera de te ver chegar. Porque não vieste tu, J? Tinham sido tantas as tuas promessas naquela rua amontoada sem sentidos. Estava certa do re-encontro. Mais certa agora que aqui estás. És um ser estranho, não conheço as fissuras do teu corpo, as cicatrizes marcadas durante a infância. E ainda assim vou contigo e sinto o teu hálito perto dos meus lábios. Tens os lábios grossos J, os caracóis desalinhados sobre a testa. Leva-me J. Leva-me onde me queres levar.

J abre a porta da cabine telefónica. Sai em silêncio. M segue-o.

-J: Vou levar-te ao meu Deus...

Silêncio.

sábado, 20 de setembro de 2008

fé n.º 38: os inevitáveis encontros de Maria e José

-J: Pudesse eu encontrar-te agora M. Conhecesses tu o meu amor, os meus lugares de culto. Eu queria levar-te ao único sítio onde encontro o Deus que me roubaste. Se viesses comigo, reencontrar-vos-ia aos dois. Levaste a minha fé, M. Levaste-a, M. Exijo que ma devolvas, exijo que me devolvas a possibilidade de sonhar contigo. Para onde levas tu a minha fé, que queres tu dela? É minha M. Arranja a tua; arranja uma fé que te sirva. Arranja uma capela acimentada no meio da realidade citadina onde as pessoas choram quando se canta em playback. Arranja uma capela minúscula onde são dez os crentes que lá entram, não mais que dez. Arranja uma capela que suporte a tua ausência e não invadas um espaço que é meu: não permito que entres no meu balcão imundo cheio de restos; muito menos permito que invadas a minha capela, o meu único devaneio antes da loucura das noites loucas, o meu único segredo antes das mil mulheres que me caem nos braços. Fico aqui, a chorar pelo teu amor, ansiando o segundo em que heroicamente invadirás todos os meus espaços, mas não permito que o faças. Estou velho para que me queiras mudar, estou velho para querer mudar. Dancei noites demais sozinho como um bicho, estive só o tempo todo que foi tempo que passou, a única coisa que me pertencia era Deus, esse Deus que desconheço de onde vem: vieste tu M, vieste tu arrancá-lo de mim. Com que direito M? Com que direito vieste de encontro ao meu segredo? Vou procurar-te pela cidade inteira, vou arrancar-te das estações de metro, dos comboios amontoados, vou entrar em todos os cafés, em todos os becos, em todos os sítios de culto que não me pertencem e vou encontrar-te, vou encontrar-te para saber que não espalhaste a notícia da minha fé: há afinal esperança em mim para a mudança. Quando te encontrar M, vou levar-te comigo, vou desafiar-te ao encontro do meu Deus roubado que te pertence agora, mas que é um estranho não mais do que isso. Quando te encontrar M, hoje mesmo ainda na cabine telefónica onde te deixei, vou levar-te à minha capela. Vou revelar-te a única coisa em mim que não repugna, que não cheira a comida. Vou procurar-te, agora mesmo. Sei que não estás longe, a maresia anda por perto, tenho os lábios salgados dos últimos beijos que trocamos. Vou encontrar-te na cabine muda. Corre M, corre para lá.

Desta vez serei eu aquele que espera...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

a guerra e o Homem: os inevitáveis encontros de Maria e José

M deixara a sala escura e húmida onde encontrara o Homem. Lembrava-se vagamente de umas paredes azuis. A luz era pouca, talvez uma cave, um sótão. Era difícil situar a sala, as memórias dissipavam-se rapidamente, como se o encontro não tivesse acontecido: a memória única que permanecia em ebulição era a de umas paredes altas e azuis que consumiam todo o espaço. Onde? M seria incapaz de regressar lá sozinha.

Pela primeira vez M sentia uma certa inquietação ao pensar no Homem: ele falara-lhe de uma guerra que ela não desejaria travar com ele. Preferia antes trava-la com J, mesmo que ele preferisse um acordo de paz. Imaginava-se em cima de um tanque, de um gigante tanque a entrar na copa de um restaurante saqueando copos e pratos, garrafas de whisky adulterado e facas de ponta aguçada. Imaginava como isso perturbaria J e que isso o faria segui-la até ao fim da viagem. Mas J estava desaparecido e M sentia a angústia dessa ausência. Não podia recuperar nada que lhe pertencesse. Para além de um rendez-vous ocasional, M apenas tinha esperado por J em frente a uma cabine telefónica. Sentia-se terrivelmente apaixonada: ele era um homem, as mãos dele suavam e o cabelo desalinhado caía-lhe sobre a testa, tinha os lábios grossos e um corpo sem fim. Não havia poesia nos seus gestos, muito menos encantamento. Todo ele eram batalhas de dureza e virilidade infantil por travar e isso transformava M numa mulher de armas, pronta a atravessar corpos com tiros de pólvora quente, pronta a deixar-se abandonar no meio de tantos outros cadáveres mutilados pela guerra.

J não aparecera com as armas, tinha faltado ao compromisso de honra de um soldado. M tinha todas as armas nas mãos; ninguém para matar.

Entretanto o Homem esperava M bem de perto com uma granada na mão.

-Homem: Quando me encontrares numa rua estreita serei o primeiro a dar-te a mão. Sempre te soube pronta para um mergulho num corpo desconhecido, sempre te conheci querendo a grande guerra eclodindo nos teus cabelos. Agora estou aqui, regresso aos teus passos e tu esqueceste o meu nome. Eu não me recordo também. Apaguei o meu nome para poder dar lugar ao amor estéril que é o nosso. Não sei o que há em ti que te transforma num voo mais profundo que todas as rosas. Estranha, funda criatura. Enquanto não chegares terei o dedo pronto para pressionar o gatilho. O relógio está em contagem de-crescente. Só faltam dez estações até chegar ao centro da cidade envenenada. Declaro-me em guerra com o amor...

das minhas indecisões

Não sei o que fazer com a Maria e com o José.
Talvez devesse matá-los. Era simples.
Preciso de inspiração.
Preciso que eles me apareçam diante dos olhos...

aos meus lutadores






Nunca ninguém nos disse que ia ser fácil.

Mas eu acredito. Acima de tudo, acredito-vos...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

os desassossegos de maria: os inevitáveis encontros de Maria e José

M deixara a cabine telefónica há horas. Estava cansada de esperar pelo homem dos golpes nas mãos. Teria lá ficado a vida inteira se pudesse, mas cedo aprendera que uma boa dose de egoísmo era a única forma de se manter sã. Estava estranhamente disponível. O aperto da ausência transtonava-a, mas não a matava como poderia pensar. J não aparecera como prometido, J aniquilara a possibilidade do rendez-vous. M estava à espera que esse fosse o procedimento único e inevitável das coisas. Cedo demais, todas as coisas se mostraram inevitáveis para M.

M conhecera em tempos um outro homem, o único homem aliás que M conhecera antes de J. Era um homem como outro qualquer, nada nele era tão verdadeiramente fascinante como em J. Este homem era só um homem. Vestia calças de ganga como qualquer miúdo imberbe. Nada nele havia de inquietante; não cheirava a óleo como J, nem usava uma mochila às costas cheia de roupa ensanguentada. M seria incapaz de o fotografar se quisesse, não encontrava nele entranhas suficientes, loucura suficiente para o fixar. Contudo, este homem que era só um homem teria sido incapaz de deixar M numa cabine telefónica à espera; na verdade nem M esperaria por ele. M teve uma vontade súbita e inesperada de encontra-lo depois de ter esperado e esperado em vão por J. Estava disponível, para quê nem ela própria terá percebido.

O desencontro de M e J transformara-se no encontro de M e do homem. O homem sem nome, sem cheiro, o homem das zero inquietações.

-Homem: Onde está a guerra que foi o nosso amor?

-M: Não me lembro das nossas armas; não me lembro de ter travado essa guerra.

-Homem: Todas as noites chegava em cima de um cravo para te apanhar à beira rio. Tinhas os cabelos compridos e menos vinte anos. Comias peixe ao pequeno-almoço e subias para o tanque pronta para me atacar a qualquer instante. Havia cólera ardente nos teus olhos. O teu desamor queria matar-me e isso fazia-me querer estar perto do epicentro da batalha, das tuas coxas, do vinho derramado no teu umbigo.

-M: Não me lembro desse vinho; mas lembro-me dos vinte anos que passaram. Terão sido vinte os anos que passaram? Não foram menos dez que esses todos, menos vinte, não foi ontem mesmo que te conheci?

-Homem: Antes o teu cabelo era comprido, era vinte anos mais comprido do que é hoje...

-M: Não me confundas. Foi ontem, foi ontem que te conheci. Eras precisamente o mesmo homem que és hoje. Não cheiravas a coisa nenhuma. Parecias morto. Hoje pareces tão morto como ontem. Não podes estar morto há vinte anos.

-Homem: Há vinte anos fazias amor comigo. Há vinte anos...

-M: Não digas mais nada, peço-te. Faria amor contigo se tivesses cheiro. Talvez assim pudesse conhecer o teu nome. Prefiro ser um homem sujo a uma mulher que se deita numa cama lavada. Talvez me entendesses se soubesses o que é ter as unhas cravadas na terra, o ventre sujo pelo amor de um homem. Talvez compreendesses o que são vinte anos se os tivesses vivido dentro de uma casa devoluta cheia de infecções.

(Pausa)

-Homem: É bom falar contigo.

-M: É bom. Se soubesse o teu nome, fazia amor contigo.

M sentia-se agora um pouco como J: desassossegada, só.

-M: Devolve-me o meu Deus, J. Devolve aquilo que me tiraste...

domingo, 14 de setembro de 2008

sobre a amizade em tempos de solidão

Obrigada...

resumo bíblico: os inevitáveis encontros de Maria e José

M e J vão continuar desencontrados por mais dois mil anos.

a problemática da solidão: os inevitáveis (des)encontros de Maria e José

-J: Quem és tu M? Quem és tu? Vieste desorganizar a minha vidinha simples. Vieste virar o rumo da minha solidão. Quero passar noites em antros cheios de fumo, cheios de gente perdida em garrafas vazias, quero passar noites com mulheres nenhumas, quero não conhecer os nomes e o cheiro dos seus cabelos. Vieste tu, M, desorganizar a minha solidão. Os meus antros do avesso. Cheiravas a mar quando te dei a mão, o teu cheiro era profundo. Eu não posso ir contigo onde me queres levar, não posso dar-te a mão e ir contigo onde me deves levar. Vou fazer-te mal, vou rasgar-te a pele todas as noites, fazer-te filhos lindos, cortar-te os cabelos negros e hei-de ir embora todas as manhãs antes de acordares, hei-de deixar-te todas as manhãs sem coisa nenhuma. Não me vou apaixonar por ti. Estou seco, velho, não há em mim uma gota de amor. Levaram tudo. Não penses que te vou amar, nem penses sequer que eu posso deixar-te estendida nos meus braços durante a noite. Hás-de acordar só, tão só como eu me sinto todas as noites. Tão só como o alcool que me tolda todas as noites. Experimenta estar só M. Experimenta estar desesperadamente só. Percebes agora M? Persegues como é angustiante não ter um sítio para cair quando já se morreu? É assim que estou, apodrecido e coberto de vermes. Agora não, não vou contigo para lado nenhum. Tu cheiras a mar e eu estou morto. Não te vou encontrar para te matar também. Não posso matar os teus olhos. Não posso aniquilir agora a possibilidade de estar contigo. Estou morto M. O oxigénio acabou dentro daquele parque de estacionamento. Consegues perceber porque não foste salvar-me? Vou perder-me com mais cem mulheres se não vieres salvar-me M. Vou fazer-lhes os filhos todos que devia ter-te feito. Vem salvar-me M, que estou só, tão mortalmente só. Não sinto nada. Só me lembro do teu cheiro, da novidade do teu cheiro. Vou morrer sozinho dentro do parque de estacionamento. Tenho o avental na mochila coberto de sangue, de vinho e de lábios. Lábios teus... e tão só que estou, tão só afinal. Diz-me onde enfiaste tu o nosso Deus? Está aí alguém? És tu M, és tu que me matas, que destróis a minha fé? Mataste o meu Deus M e por isso não vou contigo para onde me queres levar. Estaremos, por agora, desencontrados. Desencontrados até que devolvas o que me tiraste. Devolve-me Deus. Devolve M, devolve...

sábado, 13 de setembro de 2008

as más decisões: os inevitáveis encontros de Maria e José

J está sentado. Bebe café. Pergunta-se porque não terá aparecido na cabine telefónica da rua com sentido único onde encontrara M pela primeira vez. Pergunta-se que motivo é este, tão grande, tão monstruosamente grande que não permite que o amor lhe invada as veias secas e as encha de fogo. J continua sentado. M continua à espera. Resolução impossível.

as impossibilidades: os inevitáveis encontros de Maria e José

-M: Onde estás tu J? Dizes-me onde andas tu? Fiquei à espera na cabine telefónica, o centro transpirava gente cansada e ainda assim esperei na cabine telefónica. J que é feito de ti? Que é feito do teu avental sujo das entranhas do mundo todo, que é feito dos golpes das tuas mãos provocados pelas horas intermináveis que passavas na cozinha a cortar pedaços de carne vermelha, que é feito do teu estado de transe e dos olhos revirados enquanto passavas, perdido no meio dos pratos imundos empilhados no balcão? Esqueceste-te, foi, esqueceste-te que iria amanhecer em poucos minutos e que eu esperava na cabina telefónica? Cretino. É isso. Fizeste parar a Primavera, disseste-me que ela iria desabrochar em cima dos meus ombros e fizeste-a parar como uma faca que rasga um ventre maduro. J, tens o avental coberto de sangue. São as tuas mãos secas e as minhas veias inchadas que te mancham o avental. J, estás a suar, tens o rosto coberto do gotas espessas, tens a cara velha e rugosa cheia de gotas espessas. São as tuas promessas vãs e a minha feliz ingenuidade que te fazem suar? Cretino. Cretino! Corre, vamos, corre para o centro da cidade, para os tubos que ardem debaixo da terra. Corre para dentro do parque de estacionamento e envenena-te um bocadinho mais, envenena-te até ser último o último rasgo de oxigénio. Não esperes por mim J, eu não vou correr para te salvar. Vou ficar sentada, na cabine telefónica, embriagada com a imagem do teu avental imundo à espera, sempre à espera de te ver chegar. Vais estar sozinho quando te faltar o ar e eu não vou correr. Estou mal calçada para correr. Quis pintar a boca de vermelho para te ver chegar e por isso não posso correr: não há correspondência (im)possível. Destruímos o rendez-vous poético que o universo nos ofereceu: tu por seres cretino, eu por gostar da tua cretinice. Agora a única imagem que me assombra é a dos teus braços mortos dentro de um lava-louças colossal tentando dar vazão às centenas de pratos consporcados pela boca faminta dos homens da cidade. A cidade parece morta quando não passas, a cidade cheira a canos. J, não tenhas pena de mim, não te atormentes. A minha juventude não me cega nem me rasga o peito. Sei bem lidar com a espera. Estive a vida inteira à tua espera... Não quero compaixão. Quero antes afogar-me no Tejo bafiento que invade a minha janela do quarto e imaginar-te sufocado num parque de estacionamento enterrado debaixo da cidade inteira. Trouxeste o teu avental, J? Querias passá-lo por àgua e estendê-lo ao sol? Esperas ver findas essas manchas? Foi vinho tinto, meu amor, foi vinho tinto que derramaste nesse avental, foi o vinho tinto que os meus lábios tocaram. Não te vês livre dessas manchas tão cedo. Eu vou desaparecer se não chegares à cabine telefónica mas no teu avental ficará impregnado o gosto da minha saliva. J, que é feito do nosso rendez-vous? Amor nenhum, J, amor nenhum.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

lisboa tem mais encanto na hora da despedida: os inevitáveis encontros de Maria e José

Um rendez-vous citadino. Sim, é esse o termo. Dois estranhos que desconhecem as combinações cosmológicas, uma cidade, um rendez-vous em potência. Sim, é esse o termo. Nas inevitabilidades da vidinha simples existe sempre um rendez-vous em potência. Os estranhos: dois estranhos perfeitamente vulgares: M (chamemos-lhe assim), visual hardcore, olhar angelical. J (chamemos-lhe também assim), visual desportivo, barba por fazer, 1,90m, olhar indefinido.
M e J acordaram desconhecendo a partida do cosmos: tudo se encaminhava, como qualquer coisa que é inevitável, para o acontecimento: O RENDEZ-VOUS ainda em potência, seria nesta altura do dia (provavelmente 9:40 da manhã) um pequeno embrião fecundado há escassas horas, ou seja, o resultado do amor fértil de dois seres embriagados pelo odor de uns lençóis amarrotados. M vive junto ao rio; é artista. J vive na Graça; empregado de restaurante.
O céu estava escuro. Manhã acinzentada lembrando mais Porto que Lisboa. M procurava unicamente inspirações para poder parir mais uma obra pós-moderna cheia de significados ocultos por uma linguagem intelectual e apupada (apupada era aliás uma palavra pela qual M nutria um grande carinho). J entrava no restaurante e procurava no cacifo comum o avental oleoso, que cheirava a batatas fritas e a cebola (cebola era aliás um vegetal pelo qual J nutria grande repulsa). M estava cheia sonhos, J perdera a vontade de sonhar. Nada faria acreditar que a distância geográfica e os objectivos díspares pudessem, de alguma forma, cruzar-se numa cidade tão cosmopolita e hoje tão cinzenta.
M passou horas a olhar para estranhos: nem as putas, nem o vinho verde a inspiraram. Não houve um olho que a inquietasse. J passou horas a olhar para estranhos: nem as putas nem o vinho verde o fizeram sentir-se menos oleoso. Não houve uma omelete que não ficasse queimada. Exaustos, mortos de fadiga, decidiram que a inevitabilidade que o tédio lhes oferecia estaria prestes a findar. M não regressou nessa noite ao seu minúsculo T1 com vista para um Tejo sujo e bafiento que pagava arduamente. J não regressou às suas àguas-furtadas centenárias onde chovia torrencialmente todos os Invernos. Tomaram a inevitável decisão de mudança: embuídos pela vontade de subversão, caminharam, ambos sem rumo concreto; esperavam o comboio na paragem do autocarro.
Rua estreia sentido único: M segue a nortada, J vem de oeste. Grande tumulto, a multidão circunda a rua onde vai ser parido o rendez-vous. Uma maçã rola sobre a estrada. M encontra o sentido poético que hoje lhe faltara tão claramente e que a conduzira para aquele sítio tão estranho, tão pouco íntimo: corre tentando apanhar a maçã. Tropeça. Cai. J está no meio da multidão. É esmagado pela maçã, em seguida esmagado por M. Grito. Comunicação visual impossível (gente demais). J estende o braço para apanhar os cacos de M.

-J: Estás suja...

(silêncio)

-M:Cheiras a cebola frita...

-J: Foi a coisa mais íntima que ouvi hoje.

O cosmos fizera a sua parte. O rendez-vous em potência funcionára. M e J terão de fazer o resto. É fácil chegar a Lisboa, ser recebido pela multidão. Pior é encontrar o caminho de volta para casa...

há um sonho que tenho muitas vezes


A sensação de estar perdida costuma chegar durante a noite, quando o son(h)o já se apossou do corpo e de qualquer possibilidade de fuga. Assemelha-se às intermináveis viagens de carro no pico do Verão em que o discernimento e a paciência se esgotam em segundos brevíssimos. Caminho para o encontro das caras conhecidas e após a grande mancha negra vejo-me só, num espaço que me é íntimo, mas só, perdida afinal! Repetidamente tenho esta sensação e dou por mim, passada a embriaguez do son(h)o, recuperando forças para a avaliação racional deste acontecimento. A verdade é que mesmo tendo os grandes olhos abertos, não me sinto mais achada do que durante as minhas deambulações oníricas. Os erros que vamos cometendo, ou os sonhos que ingenuamente alimentamos, não se dissipam tão simplesmente como seria de esperar. O alívio do desprendimento após a viagem não é claro e o limbo não vinca a passagem dos planos. Durmo perdida e acordo perdida. Estou perdida, é simples! Mais simples seria o encontro de um caminho despreocupado e simples, sem paixões avassaladoras, sem compromissos que o não foram. Nesse caso estaria não-perdida e por envolver. Secura tal... Às vezes a secura apetece. Só para não querermos morrer ali mesmo, perdidos e angustiados.

Hoje, porém, não me apetece encontrar nada...

terça-feira, 9 de setembro de 2008

regresso às andanças teatrais





ENCONTROS E DESENCONTROS
NO CAMPO COM O TIO VÂNIA


cine-boa-disposição


Há muito tempo que não me ria tanto!

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

problemáticas da gestão do tempo


Preciso de fazer alguma coisa...

domingo, 7 de setembro de 2008

zé: o amigo das tardes de quarta-feira


Um dia conheci o Zé. Éramos ainda mais jovens do que hoje somos; encontrámo-nos num palco. Os sonhos de cada um eram sonhos comuns, desejos semelhantes. E todos as quartas-feiras, após a grande viagem, o Zé esperava por mim para podermos partilhar as angústias adolescentes e semanais: todas as quartas-feiras eu e o zé nos sentávamos ao sol, pés descalços e conversávamos até ao começo da noite, hora em que a inevitabilidade do comboio se aproximava. Um dia o Zé tomou uma decisão e partiu para voos outros, não distantes dos meus, apenas geograficamente diferentes. Então o Zé começou a desaparecer aos pouquinhos, porque assim é a vida e porque assim aconteceu. Pouco a pouco encontrava o Zé mais distante de mim, nunca ausente, embora menos distante da boa memória que eram as conversas de quarta-feira. Passaram quase quatro anos e reencontrei o meu amigo com a regularidade do antigamente. Estranho é perceber como a proximidade engrandece a saudade. Tantas saudades, meu amigo. Hoje a necessidade de partilha permanece tão virgem e honesta como nos dias de maior juventude: conversa sem fim e muita conversa para pôr em dia. O Zé voltou a fazer parte dos dias todos e todos são os minutos em que percebo como é bom trocar com ele as aprendizagens quotidianas. Hoje lembro-me das promessas: as quartas-feiras que fizeram parte da juventude mais casta tornam-se agora jantares e tertúlias em veias cheias de fogo.

Está prometido!

da criatividade


Invenção de novo vocábulo para o enriquecimento do léxico português:


medo + merda = MERDO


(...)

dos encontros ou a história da red shoes


Fim de noite, deu-se o encontro; sapatos vermelhos e caracóis espigados. (In)esperado. Da expectativa nasce o desejo de partilha, nasce o desejo de troca de qualquer coisa que dê vazão à necessidade. Sapatos vermelhos esperava caracóis espigados. Esperava ter uma tesoura à mão para resolver o problema. Esperava acima de tudo arranjar outros problemas que permitissem a perpetuação do instante. (Instantâneo)... No fundo o encontro podia muito bem ser tão fugaz e rápido como o trabalho do microondas que solucionára tantas vezes, a falta de tempo prático para o almoço. A poesia parece finda perante cenário tão suburbano; parece findo o amor. O amor estava enterrado no Tejo e sapatos vermelhos, à porta do quarto, lia estórias loucas de gente que continua a procurá-lo em sítios bizarros. Bizarra situação: o Tejo ali tão perto... amor nenhum! Dos encontros tudo fica desarrumado: guiões riscados, deixas cortadas, marcações (de vida) em aberto. A expectativa torna-se, de repente, num entrave para o disfrute da liberdade. Pior, a expectativa destrói a possibilidade. O encontro, porém, permanece vivo. Depois do abandono, regressa o desejo, a motivação da busca. Não há caminho mais tumultuoso que aquele que incessantemente buscamos.

O Tejo afinal perde-se ao longe, viagem infinita: sapatos vermelhos na caixa, caracóis cortados: dos encontros tudo fica...

sábado, 6 de setembro de 2008

P.S. de dia 5 de Setembro


Hoje vi pessoas de quem gosto muito a lutar por um sonho... tão cheias de esperança que estavam.

Tanta fé em tantos sonhos...

Do regresso à normalidade...


Há dias em que a transgressão das regras parece ser a única possibilidade para o encontro do equilíbrio. Os dias têm estado do avesso: casa cheia em dia de desaniversário, lembrando as loucuras de Alice no país das maravilhas; corrida desvairada para além do Tejo em dia de aniversário, esquecendo as expectativas dos vinte anos sonhados. Dias loucos, o mundo às avessas. O feliz encontro da transgressão permite o regresso à tranquila normalidade que nos acompanha. Os dias poucos normais fazem-nos querer voltar a casa, sabendo que a visão do Tejo em altas horas, madrugada fora, voltará em breve, descomprometida e embriagada. Ah! ... a embriaguez dos loucos por amor... Onde deixei eu a pequena inocência dos sweet little sixteen?

Estranhamente feliz, regresso às mãos que me geraram...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

dia do avesso


Hoje não faço anos mas tenho a casa cheia de amigos e um bolo com velas.

Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida


O caminho até casa foi criado depois de muitos ventos de norte. Perdemo-nos tantas vezes. O regresso é simples; recomeçar pelo trilho gasto, mas sempre em direcção ao ninho que nos gerou. Eu, regresso hoje à casa que foi um útero. Regresso para o reencontro dos irmãos queridos e das feridas mal saradas. Começou a viagem, a re-viagem. Para onde caminhamos nós? Sempre para casa...