domingo, 28 de dezembro de 2008

Judith I, por Gustav Klimt ou a Salomé, de Oscar Wilde



Às vezes sinto-me capaz de matar um homem pelo amor que lhe tenho.
Como a Salomé fez com o Iokanaan.

A Torre de Babel segundo a minha visão depois de morta

Sempre fui um bocadinho megalómana. Construí uma enorme torre, estruturada, forte. Há cimento e vigas nas bases e tudo o que se vê é fruto do trabalho dos homens. A torre é firme e eu também a construí, também houve esforço das minhas mãos. Enchi a torre de homens, de mulheres, de crianças e velhos (pensei excluir os adolescentes por serem demasiado complexos). Enchi a torre de tudo o que cheirava a gente. Quando me apercebi eram milhares. Mais milhares chegavam todos os dias. Um dia percebi que ninguém falava a mesma língua e que, pouco a pouco, o caos ia encontrando o seu conforto dentro da torre. À minha volta começaram a morrer pessoas: algumas cegaram outras sucumbiram simplesmente à desordem. Tentei perguntar a um homem qual era o caminho que me podia levar dali para fora: não obtive resposta. Dentro da enorme torre estruturada começou uma guerra. Havia armas e feridos e sangue e cada vez eram menos os milhares que lá viviam. Agora, neste sítio onde estou já não há som: não se ouvem as metralhadoras nem os gritos das crianças chacinadas. No sítio onde estou consigo ver o resultado da minha obra: as pessoas morreram todas, a língua do acordo não foi encontrada. Acabou por apodrecer tudo, tudo o que vivia, menos a torre porque era firme, forte e estruturada e havia cimento e vigas nas bases que a prendiam ao chão.

sábado, 27 de dezembro de 2008

Parte III: (...)

As mensagens de Natal já não são o que eram.

Parte II: Mensagem recebida dia 25.12.2008 às 10h40

Desculpa... Enganei-me. Mas..., FELIZ NATAL!

Parte I: Mensagem recebida dia 25.12.2008 às 10h36m

Amo-te.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Anomalias: as mensagens de Natal já não são o que eram...

Há vários dias que ando preocupada com esta coisa da responsabilidade: é disso que me acusam; ela é responsável...demais. Responsável demais. Nunca acreditei que pudesse ser acusada deste crime, não porque não o cometa, simplesmente porque para mim, responsabilidade não era sinónimo de delito. Depois de meditar arduamente acerca desta temática percebi que tenho um lugar no banco dos réus: a responsabilidade tem aniquilado muitas coisas que poderiam acontecer se a preocupação em cumprir regras não fosse tanta. E pouco a pouco, vou percebendo que soltar um bocadinho as amarras só me fará bem, e até posso recusar cafés e tudo. Posso dizer que hoje não é o dia, e que amanhã continuarei sem vontade de sair do ninho que é a minha casa. Posso sempre inventar desculpas estapafúrdias como pequenas gripes para poder ficar mais duas horas na cama. E não tenho de me sentir culpada por não frequentar a única cadeira teórica que tenho este ano. Fiz sempre tudo certinho, foi sempre tudo muito perfeitinho: as prendas para os amigos, a letra, a roupa. As coisas comigo são impecáveis. E hoje sinto que preciso de me sujar: preciso de pôr as mãos na terra e ficar com as unhas castanhas, preciso de chegar amarrotada a uma festa ou dizer disparates aos amigos que conheço há anos. Preciso desesperadamente de cometer erros, chocar contra os objectos que estão no mesmo sítio desde que me lembro deles, ficar com nódoas negras tremendas nos sítios todos do corpo. Preciso de dizer as coisas que geralmente não digo e ficar aliviada. Preciso de preparar discursos muito estruturados no comboio para dizer a alguém e que os planos me saíam furados assim que abro a boca. Preciso de ficar a dançar sem dizer nada a nínguem. Planeio fugir durante uns dias e omitir a minha fuga: vou encontrar uma casa com lareira no meio das árvores e por lá ficarei enleada em prendas de natal e papéis para rabiscar as tristezas. Os últimos meses têm sido uma aventura, trabalho demais, durmo de menos. Confundo as coisas simples. Tenho-me sentido em estado de alerta, coberta de preocupação e responsabilidade. Hoje, sem mais nem menos, sinto-me mais levezinha e parece que posso voltar a arrumar o quarto que ficou caótico durante tanto tempo. Desconheço a forma como reorganizarei os objectos, tenho menos livros na prateleira e isso não me incomoda porque sei que estão em boas mãos. E sei que vou voltar a encontrar a minha casa, o meu porto, exactamente como o deixei há seis meses atrás. Sinto-me pronta e com algum egoísmo, não me apetece paz, nem nada dessas coisas natalícias. Para mim e para aqueles que me são queridos, só quero que possam arrumar as coisas no sítio onde pertencem. Quero que depois das grandes ventanias chegue a hora em que tudo se compõem, em que nos reconhecemos como antes. Quero que possamos encontrar aquela juventude inocente em que éramos felizes e despreocupados. Quero ter quinze anos tendo vinte. Quero beijinhos e depois beijos. Quero saber o caminho para casa. Desejo intimamente que saibam o vosso ou que o descubram. Eu tenho tudo dessarumado há demasiado tempo. Começam hoje as arrumações.

Feliz Natal

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Fiasco apresenta: Silêncio pós-secador

Não há nada de infértil neste nossa tentativa. Parece-me que demos à luz uma criança saudável. Acredito no fiasco que são as nossas incursões na criação e comove-me pensar que em poucas horas construímos um universo íntimo e poderoso. Ergo o meu copo de vinho estacionado na mesa de cabeceira e saúdo o nosso projecto: o primeiro de muitos.

Acima de tudo, Francisco, meu querido, obrigada, obrigada pela tua fé, pelo teu desafio.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Seis meses de faz-de-conta

A minha intenção não foi ser complicada. Queria as coisas como elas eram simplesmente, sem grandes histórias de amor ou heróis devassados pela fúria. Para mim, as coisas deviam ser só as coisas, porque geralmente isso é já suficiente para fazer o meu estômago doer menos. Passámos seis meses a brincar ao faz de conta, inventámos missões incríveis pelo espaço, a estrada pareceu estender-se sempre mais quilómetros quando viajámos de carro. Eu não estava à espera que aparecesses, muito menos que fizesses tanto barulho: eu tinha o quarto arrumado e os sapatos guardados dentro de caixas. Vieste tu, desarranjar as coisas simples da minha vida. A minha intenção não foi ser complicada, mas tu sabes como é, conheces-me desde que era uma criança: complico tudo! A tua mão, que poderia ser só a tua mão, é o consolo último que encontro antes da solidão. Se eu pudesse sufocar a tua mão, talvez o fizesse sem hesitar. É só porque sou complicada e nunca entendo muito bem os gestos com que me saúdas. Ás vezes és um estranho como outro qualquer, e isso torna-me simples perto de ti: não tenho medo de acariciar as tuas costas com as minhas unhas, muito menos tenho medo de saber que sou tua companheira, mesmo que não haja amor. O nosso amor é simples, é a consequência dos anos e da intimidade. Não é daqueles amores em que ficamos sem fôlego, não é um amor colossal, daqueles que nos fazem ser incompreensivelmente inocentes. É um amor simples e tosco que desconhece os trilhos do corpo, é um amor tosco de conversar sobre as coisas que não querem dizer nada, é um amor tosco de trocar beijos debaixo da mesa para ninguém ver. É um amor que não é maior que nada, nem me faz tremer, nem querer morrer que quero sempre quando as coisas se complicam. É só um amorzinho, um amorzinho tolo que martela, martela, martela no peito até não poder mais. É só um amorzinho afinal, um amorzinho de crianças que quando tinham quinze anos esperavam tudo dos outros e de si mesmas. Eu não quero morrer por ti, não quero sofrer pelo desamor, não quero amuar porque não olhas para mim ou porque não me encontras nos corredores. Afinal o meu amor é pequenino e simples, é só um amor que vem do tempo, dos anos, dos seis meses em que brincámos ao faz de conta.
Desculpa, desculpa se complico tudo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Remorsos pós-destruição

Ter o coração na boca nem sempre é bom. Viva o silêncio. Obrigada!

Destruição das técnicas

Amo-te.

Técnicas para resistir aos olhos

Tenho de te dizer: não vale a pena romancear, ambos sabemos quais foram os motivos que nos trouxeram até aqui!

Técnicas para resistir ao desamor

Tenho de te dizer: hoje não, hoje não vou contigo!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A menstruação


Olha, sabes quantas vezes me deitei sem boxers para poupar dinheiro na conta da àgua? Sabes quantas vezes não pus a máquina a lavar e trouxe comigo a mesma roupa suada e ensanguentada pela tua menstruação? Imaginas a quantidade de vezes que fiquei petrificado na rua à espera, sempre à espera de te ver chegar? Chovia sempre e nem as tempestades me demoviam da espera. Fazes ideia dos litros de vinho em que consporquei o meu fígado só para poder imaginar-te dançar? Não vivi durante oito anos porque sabia que acabarias por pegar nas armas e desaparecer. Amo-te como se ama a merda e não vale a pena ficares atordoada perante esta visão porque o meu amor é assim mesmo: visceral. Um intestino ou a luz das manhãs valem a mesma coisa e isso não tem nada de assustador. É simplesmente a consequência das minhas insónias acumuladas. Se o amor fosse um lugar-comum seria uma sajeta. Nunca tive nojos na vida. A carne pendurada no talho não me arrepia a espinha e quase sempre tenho a sensação de ser imune às doenças que causam asco. As minhas, não as recuso, são doenças da carne, sim da carne, mas que não se materializam em feridas abertas e torrentes de sangue. Dói-me aqui, no lugar que também foi a minha virgindade, no lugar onde reencontro os teus passos entrecortados e a vida presa por um cabo de aço. Não que isso a torne estável. O cabo de aço acabará por ceder como o meu estômago, como o meu cérebro e essa é a única certeza que me acompanha enquanto caminho para o desmembramento do corpo, para a angústia hipocondríaca da morte. Lambia os dedos se houvesse um açucareiro à mão, espetálos-ia no açucar e sugaria o doce pestilento que se mistura com o acre dos meus dedos. O limite entre querer morrer e a morte é mais ténue que a prostração que a solidão imprime nos músculos. Estar só é um acontecimento infeliz que nos permite uma certa acomodação, às vezes prazerosa. A vontade de morrer e a concretização dos desejos dissimula todas as acções vindouras a partir do instante da decisão. Se eu desejar morrer, agora mesmo, impelido pelo egoísmo mais atroz do mundo, poderia fazê-lo sem perigo de retaliações. Por outro lado, se decidir prostar-me só para a vida toda que se avizinha, o mais provável é que acorde com a casa coberta de ovos podres e três ou quatro crianças entoando jogos mórbidos acerca do menino que ficou perdido na floresta.
As urgências do Francisco

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Marcha fúnebre

Não conheço este lugar. Não conheço este lugar onde não há medo. Não ter medo é assustador. Não é este o lugar onde me materializo. O meu corpo está desfasado do espaço, eu estou desfasada do tempo. Nem sei ao certo quando aconteceram todas as coisas que me deixaram de luto. Parecem meses, anos e foi tudo ontem. Foi apenas ontem que vivi todas as coisas que constroem a minha memória funerária. Não me pertenço em nada daquilo que são os meus gestos e os lábios conduzem-me geralmente a palavras que não são as da minha boca. Fico à espera das horas em que o alívio me conduz ao prazer de continuar viva perante a catástrofe. Não há nada de trágico nesta procura, são só inspirações para o devaneio artístico. Não há nada a fazer em relação à minha tristeza: ela não é complexa nem fruto de uma miséria insuportável. E talvez se assim fosse, qualquer explicação seria mais racional do que este caminhar lento para a inércia. É preciso trabalhar, fazer as coisas. Nada mais há a fazer quando deixamos de nos reconhecer.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A invenção das portas e outros problemas

A minha casa, apesar de tudo, não tem portas. É uma casa sem portas e com duas varandas corridas que dão para o Tejo, muito embora o Tejo esteja a três quilómetros de distância. A minha casa é um sítio inventado onde há um parede totalmente preenchida por livros que eu ainda não li e os outros, já lidos, estão guardados na pequena arrecadação nada sombria, ao contrário das arrecadações vulgares. A minha casa costumava estar cheia de pessoas, que bastava serem pessoas para poderem estar na minha casa. Ás vezes não eram amigos, não eram amantes, nem o pai e a mãe, a irmã e a restante família alargada. Eram só pessoas que entravam na minha casa ampla que não tinha uma única cadeira e se sentavam para lá falando das coisas que geralmente as pessoas falam. Era só uma casa a minha casa; era só uma casa. E lá dentro havia lençóis engomados e roupa lavada e fresca. Havia às vezes muita luz quando se abriam as janelas e essa luz era o encontro das palavras fecundas. A minha casa que era só uma casa era estruturada e mesmo quando havia ventania lá fora, os pilares não cediam nem sequer tínhamos medo. Muitas vezes havia vinho no chão e alguns cigarros apagados em cinzeiros improvisados. Isto porque a minha casa tinha sempre muitas pessoas que eram só pessoas dispostas a trocar palavras fecundas enquanto se sentavam no chão da sala. Um dia, quando puseram portas na minha casa, as pessoas morreram todas. Não havia pessoas, nem amigos, nem amantes, nem pai e mãe, irmã e família alargada. Quando a minha casa nasceu de novo com portas restou uma única criatura no mundo, que ainda hoje não sei bem se era pessoa ou se era só criatura. Talvez tenha sido essa estranheza o motivo pelo qual esse ele permaneceu vivo para além de todos os outros seres e de mim mesma. Talvez tenha sido essa estranheza que o conduzira à única casa com portas cujas varandas abraçavam o Tejo longínquo. Essa criatura era, ainda que sendo ou não pessoa, um homem cujo nome ainda hoje desconheço. O homem que me invadiu a casa e os lençóis engomados. Com ele, as conversas não eram fecundas. Talvez fosse o amor. O amor fecundo que gera, na maioria das vezes, outras criaturas com características quase semelhantes àquelas que têm os que as geram. Mas mais uma vez, nem essa era a fertilidade que fazia o homem entrar na minha casa. Os cabelos dele cheiravam a areia e sol. É muito provavelmente a recordação mais nítida que retenho na minha cabeça. Areia e sol. Talvez esse não fosse o melhor cheiro do mundo, mas era o cheiro daquela criatura única que permanecia viva no planeta para além de mim. Não estou certa do motivo que nos uniu, muito menos certa das razões que levaram à nossa sobrevivência após a calamidade das portas. A verdade é que muitos pássaros ficaram vivos, nos museus a arte não derreteu e todas as grandes superfícies tinham prateleiras cheias. Agora quanto ao facto de estarmos vivos e ainda por cima vivos na minha casa que outrora fora um porto de gente, não tenho qualquer justificação. Parece-me que aquela coisa a que chamamos fé tenha sido a única razão, racional entenda-se, para a sucessão de acontecimentos tão bizarros. Um dia quando acordei na minha casa com portas a criatura tinhas as mãos ensanguentadas e desenhava na parede memórias daquilo que devia ter sido a sua infância. A ironia daquela visão entristeceu-me. Um homem partia das suas vísceras para reescrever um passado inóspito. E ainda assim, invadia todos os compartimentos com o mesmo cheiro de areia e de sol. Mesmo agora que o homem já não está em minha casa, é esse o cheiro que está impregnado nas paredes. O homem já não está na minha casa porque morreu. Matei-o, sim a verdade é essa. Matei-o com as duas mãos e um bocadinho de fita cola que guardava dentro do armário da cozinha para emergências. Mas isso foi depois de muitos anos, não sei ao certo quantos, porque um dia eu e o homem decidimos não sair da casa que era minha e, estranhamente, agora era também dele. Para ali ficaríamos prostrados: ele diante das paredes abrindo todos os dias mais uma veia par poder terminar o seu mural; eu sentada diante da visão irónica que era aquele desmembramento. Acabámos por criar alguma intimidade neste jogo. Nem sempre dormíamos. Raras eram as vezes em que comíamos. Até porque, como tínhamos decidido por maioria, não voltar a sair daquela mesma casa, tínhamos de ser poupados. Não conversávamos. Talvez não houvesse assunto, continuo na dúvida... Um dia quando acordei, o sangue dele tinha acabado e por esse motivo, calculo, tinha parado de desenhar a parede. A obra de arte estava em fim terminada. Então, quando me viu sem nada para observar ao fim de tantos anos naquela mesma ciranda, ouvi-lhe a voz pela primeira vez: "Era bom se nos pudesses deitar juntos". Foi então que o matei. Matei-o. Porque antes de todas as outras pessoas que eram só pessoas terem morrido todas, já eu me tinha deitado com muitos homens e sabia bem como era mentira que assim se construía uma intimidade. Sem nunca conhecer a criatura com quem vivi mais de metade da minha vida, consegui amá-la mais do que a qualquer homem que se tenha deitado comigo. Então, como não queria romper o compromisso que tinha estabelecido com aquele homem e com a sua fé, matei-o com as mãos e os restos de fita-cola que deixava guardada na gaveta da cozinha para casos de emergência. Matei-o e não houve grande problema, porque na verdade não havia pessoas vivas que me pudessem punir. A solidão era agora a única realidade plausível. Estava sozinha no mundo e na casa, mas pelo menos tinha vista para o Tejo. Passei o resto da vida que me sobrou a observar o mural da infância do homem e descobri que a intimidade é a circunstância mais dolorosa dos seres humanos. Para disfarçar a solidão que sempre fora uma temática assustadora na minha perspectiva de pessoa, passei também eu a desenhar na parede. Com o meu sangue desenhei todas as pessoas que estiveram na minha casa e quando finalmente decidi desenhar o homem o meu sangue tinha secado. Seca. Estava seca para desenhar o único homem com quem tinha partilhado a intimidade dos anos. Então, com o último pedaço de fita-cola que sobrara do meu primeiro crime, atei as duas mãos, sentei-me na varanda corrida e fiquei à espera da morte.

sábado, 22 de novembro de 2008

Os inevitáveis encontros de Maria e José: o corpo desumano do amor

-J: M tens o corpo dilacerado pela brutalidade do trabalho: negrume fundo nos apoios, traços de sangue nos pés e umas unhas cravadas em rasgão bruto em cada uma das omoplatas. O teu corpo está consumido pelas dores de quem não pode parar, pelas dores de quem vê no trabalho árduo a única emergente saída para a solidão. M, porque cobres tu o corpo todo com trapos pretos? Essas são as tuas angustias transformadas em carne cortada. É a minha tese. A minha tese sobre a tua tristeza. Quando te encontrei, os teus olhos denunciaram a morte acumulada dentro das tuas mãos e dentro do resto das coisas que permanecem estanques e seguras no teu corpo. Não esperavas ver-me? A verdade M, é que não te amo. A verdade é essa. Mas não sei que coisa amarga é essa que sempre trazes contigo que me vicia. Deixa-me tirar-te a roupa, descobrir as tuas dores.

Silêncio

M...? M...? Deus roubou-te as asas e as tuas costas sangram como rios. Deus roubou-te as asas e só por isso posso ficar a olhar-te durante horas, fazendo dançar os meus dedos sobre os rios trilhados pelo vermelho que te marca a pele virgem. As minhas mãos côncavas vão aninhar-te as feridas. Foi um homem, fui eu quem te traçou a pele? Fui eu que violentamente conduzi as minhas mãos contra o teu corpo, esperando quem sabe que alguma coisa ficasse da dor? Podia matar-te agora que nenhum de nós saberia porquê nem como se chega a um acto tão bruto. Podia matar-te, esmagar-te contra uma parede e ninguem saberia que ousámos cometer o crime do amor. Penso tantas vezes na morte, pequeno anjo. Imagino um corpo, sufocado debaixo de quilos infinitos de terra. Não existe ar, nem nada que possa alimentar a corrente das veias. Imagino o teu corpo suterrado e as tuas asas minusculas partidas junto das ossadas dos antepassados queridos. Não me interpretes mal, M. Esta é a única forma de amor que me mostraram: é esta a única visão sanguinária que tenho de um coração inflamado. Mas onde fica o meu corpo se morreres? Qual é o lugar, M? Perpetuaria, se pudesse, aquele segundo em que adormecemos no sofá. Cheiravas a banho acabado de tomar e os teus cabelos pingavam no meu peito. A luz que atravessava as janelas era quase efémera, quase nada. Ficamos embalados pelo tinir do vento e das tábuas centenárias e eu desejei mais uma vez matar-te... Agora morrer contigo. Matar-te e morrer no instante da acção, sem dissolução, sem mistério. Só para poder perpetuar aquele instante em que adormecemos no sofá. Porque essa paz, essa fé no amor, não a consigo encontrar em mais lugar nenhum.

És a minha casa M.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Os tios e as Marias...


Estreamos ontem...

Hoje não reconheço em mim as sensações desse dia. A expectativa passou e aquele senhor tolo e atento que cheirava a vinho quase aniquilou o momento em que o delírio é maior que a realidade. Estreamos ontem e chegam agora dias em que seremos aquelas pessoas e depois as pessoas que somos quando as luzes caem.
Encontros e desencontros no campo com o Tio Vânia, Teatro da Trindade
29 de Out a 16 de Nov, Qua a Sab 22h, Dom 17h


Eles também estrearam ontem...
Corri para o teatro onde a visão do castelo é quase tão fantástica como a lua. Eles têm uma odisseia pela frente e sorriam como pássaros quando os encontrei na varanda onde fumamos cigarros. A noite estava gelada mas havia vinho, depois do vinho, finalmente o delírio.

António e Maria, Odisseia Cabisbaixa, Teatro da Garagem

29 de Out a 30 de Nov, Qua a Dom 21h 30



Estou apaixonada pelo teatro à falta de paixões outras...

Feliz...?

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Mensagem recebida às 05h47m: "Preciso de falar contigo..."

Identifico um problema com a comunicação contemporânea: as conversas importantes são tidas via sms ou telefonicamente. Não haveria grande perigo nesta instauração se não existissem mal entendidos. O grande problema é o seguinte: a nossa incapacidade para verbalizar a verdade perante situações adversas deveria diminuir com o uso de mecanismos automáticos de conversação. Mas mesmo atrás deste perfeito subterfúgio ou mecanismo de segurança, conseguimos criar discursos tão extraodinárimente confusos que geramos uma problemática ramificada: não só damos espaço para a existência de mal entendidos, como também protelamos a nossa incapacidade de tomar decisões em tempo real.
Mesmo assim, tenho de fazer um telefonema...

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

as novidades: os inevitáveis encontros de Maria e José

-J: Nunca disse que te podias apaixonar M, mesmo que assim o tenhas entendido... Nunca te disse... Nunca!

domingo, 12 de outubro de 2008

L.L.L.: A leveza da liberdade lisboeta

Viver em Lisboa é bem melhor do que viver nos suburbios. A rua cheira a gente. A calçada é escorregadia. Posso chegar a casa a horas indiscretas. Ando sozinha. Converso horas com o amigo Francisco que não encontrava há anos (anos?).
Os ensaios começam e sem dar conta chegam as memórias de uma temporada inesquecível lá para os lados da Graça. A temporada que agora se avizinha mostra-se já inesquecível também: muitas crianças, homens, mulheres, - quem sabe? - cheios de vontade de reconstruir uma história simples, desta vez para os lados da Trindade. Dez minutos a pé desde o Príncipe Real e o mundo é outro, é o mundo do faz de conta que sabe bem à alma.
A amiga Ana oferece a casa, a cama, o espaço a que é tão bom voltar quando a vida está numa volta estranha. A Ana é um pequeno anjo amigo que constrói com fósforos a casa mais estável onde poderia estar neste momento. A Ana é amiga da vida, para a vida. Uma vez aqui, o regresso torna-se difícil. Lisboa é a minha cidade de agora. Não quero outro sítio para estar. Não quero fazer outra coisa senão esta de cirandar entre teatros bafientos e casas amigas.
Vim procurar a felicidade na cosmopolita terra. Tenho de encontrá-la que a hora tarda. Tarda em chegar o momento da leveza...

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Três vezes um igual a zero (3 x 1 = 0): pequeno jogo de lógica sobre o amor



Todo o amor é mortal.
Eles são amor.
Logo, eles são mortais.

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AMOR COM AMOR SE PAGA.

domingo, 5 de outubro de 2008

o táxi: os inevitáveis encontros de Maria e José

-J: Não tenho carro, nunca aprendi sequer a conduzi-los. A constante embriaguez provocada pelo álcool e pelo amor tem sido um impedimento para a obtenção da minha independência locomotiva. Entendes, M? Ando a pé. Geralmente ando a pé. O rumo é quase sempre incerto. A luz branca do néon atrai-me; muitas vezes vou de encontro ao encontro dessa luz. Há homens surdos nesses sítios, homens surdos com headphones. Nunca consegui perceber o que ouvem eles. Tu sabes, M? Sabes que música é a música destes homens? Estão sempre sozinhos debaixo de um enorme foco branco e estou sempre a encontrá-los porque ando muito a pé. Não tenho carro. Não quero... Tens carro, M? Conduzes? Não gosto de carros. Não entendo como podem as pessoas fazer amor lá dentro; não entendo como podem duas pessoas que se amam amar-se dentro de um carro. Tu deves entender, não é M? Tu já fizeste muito amor, filhos lindos talvez. Já amaste muitos homens dentro de carros, mas nunca chegaste a entrar dentro das casas deles porque dentro das casas deles havia uma mulher e três ou quatro crianças famintas e fotografias de família tiradas em tardes de domingo. Fazias amor com eles nos seus carros e eles regressavam aos seus pedaços de normalidade. Não era assim, pequena virgem?
O meu conceito de amor foi destruído pela tua chegada. Tu não existes, és só a pequena invenção dos meus olhos de dentro. És só um pequeno delírio poético e eu não tenho mãos para amparar as tuas quedas porque tu não tens corpo. Criatura demasiado serena para morrer nos meus braços. Dentro de dois dias, não mais, vais encontrar-me sem roupa, pedaços amontoados numa rua suja da cidade. Vou dizer-te que não me sirvo e que não sirvo para ninguém. Vou negar-te as minhas sobras; que essas restem para as putas. Um dia até, querida M, querida virgem?, vou ser sugado pelo vento que jorra das bocas do metro e não voltarei a ser encontrado. Vou morrer dentro da boca do metro. Dois, três dias M, não mais. Agora, neste instante congelado em que te abraças a mim dentro de uma cabine telefónica vou pedir-te uma vez mais que venhas comigo. Vens, M? Vou pedir-te que me resgates da morte certa que não quero morrer já. Não sei viver porém. Mas tu, M, tu sabes como são essas coisas da vida. Tenho a certeza que já viste muitos países e que já alguém quis casar contigo. Ficavas linda com o vestido branco decotado, cabelo apanhado com pérolas.
Chegaste até mim como vento de norte; estou certo que vieste resgatar-me da morte. Vou afundar as minhas vísceras, o meu fígado em toneladas de vinho fermentado para ficar à espera do fim com menos dores. Não é no coração que me dói, é cá dentro naquilo que deve ser o meu útero, a minha fertilidade. M, pequena virgem, tu és o amor. Que o amor me salve desta podridão para a qual caminho todas as noites. Vem comigo M. Eu não sou como esses homens que te desventraram as pernas. A minha casa está só: não há nela histórias de outras mulheres, embriões nem cartas de amor desesperadas. Nunca nenhuma mulher entrou no meu quarto. Tu M, nunca entraste no quarto de nenhum homem. TÁXI... TÁXI! Rua 3, nº7, terceira varanda à direita. Vem M, vem povoar o meu asilo de memórias.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

de querer muito alguém, de não saber do amor ou a falta de credibilidade poética: os inevitáveis encontros de Maria e José

-J: Prometo M... Prometo...

o segredo do pássaro M: os inevitáveis encontros de Maria e José

-M: Uma vez encontrei-te J. Encontrei-te junto a uma parede suada. A sombra das tuas mãos desenhava um enorme pássaro no horizonte. O pássaro ficou preso nos teus dedos cansados, J. Sou eu, M, esse pássaro. Se ficar por aí engaiolada nas tuas mãos, terás de dançar comigo sempre que a solidão me atacar, se decidires soltar-me terás de ser tão firme como a parede que delineia a nossa sombra: não pode restar nada, que asas partidas nunca fizeram bem a nínguem.

domingo, 28 de setembro de 2008

Cabelos em flor

Um dia, quando não tiver bloqueios vou ter tanto cabelo como a parede tem flores. Esse dia tem de estar perto.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Inspirações performativas: 1º tentaiva

Ideia criada a partir de
Anjinho da Guarda, António Variações in Anjo da Guarda

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A (fe)sta: os inevitáveis encontros de Maria e José

M segue J. O silêncio é mortal, principalmente porque toda a cidade em redor de ambos mergulha no mecanicismo do murmúrio de milhões que se movimentam em magote e esgrime as angústias de uma existência cosmopolita. J não tem palavras para partilhar, sente-se esmurrado pela impossibilidade da linguagem; M queria dizer-lhe muitas coisas, palavras não lhe faltam, sente-se esmurrada pela falta de um receptor activo. O caminho que os espera é longo e a comunicação ausente exalta-lhes os espíritos. M sente-se triste. Triste. Apetece-lhe desistir, apetece-lhe não continuar o trilho a que se propôs com aquele homem, quase estranho. M sente-se em perigo de morte. Conhece bem as armadilhas do amor fundo. J, por seu lado, está disposto a confessar-se-lhe: a capela está perto, em breve, juntos e em silêncio reencontrarão o Deus perdido, o Deus roubado. Movidos pela fé, sim, obviamente movidos pela fé no amor em guerra que explode à flor da pele em delírios secos, M e J, desacompanhados um do outro embora lado a lado, descem a rua a pique que confluí num beco sem saída. À esquerda desse beco, um pequeno edifício de betão, sem qualquer espécie de identidade. M questiona se será aquele o sítio onde descobrirá a intimidade de J: aquele espaço demasiado impessoal pouco poderá trazer de transcendente: a transcendência era aliás uma das suas grandes necessidades. J empurra a porta deste mini-edíficio city-suburbano. Entra. M segue-lhe os passos. O interior da capela é absolutamente nu. Paredes de betão como no exterior, no chão uma alcatifa gasta e algumas almofadas espalhadas aleatoriamente. Não há um único santo para que M se renda e possa rezar. São apenas sete as pessoas no interior da sala. Com M e J, são agora nove. Um dos homens que se encontra sentado nas almofadas usa batina. A sua voz ressoa nas paredes. M sente-se intimidada: o discurso é-lhe quase imperceptível, mas em poucos minutos sente a convergência dos crentes em Deus. É a pura espectadora de um cenário de união perante uma força maior que lhe é estranha. Para J, M tinha roubado a capacidade de interacção com a convergência daquele minúsculo e bizarro grupo. Levá-la lá era, acima de tudo, um acto de amor. J decidira partilhar com a desconhecida o seu Deus, a sua fé. Não esperava de todo recuperá-los; sabia bem que para sempre tinham sido levados por uma mulher. M sentia-se comovida: o ritual incomodava-a, fazia-a sentir-se cúmplice de uma qualquer espécie de alienação. Uma mulher levanta-se. Canta. Canta chorosa. Canta o desamor e a guerra, canta os filhos mortos e as mãos calejadas do trabalho. M soluça. M perde o controlo, está definitivamente envolvida. A expressão está absolutamente fixa, as lágrimas escorrem automáticas pelo seu rosto. M volta soluçar. Nunca tinha ouvido nada assim, tudo no corpo daquele mulher-cantora eram angústias mal talhadas e dores de parto com filhos por nascer. Que força era aquela força que a fazia sentir-se pequeníssima? Que força era aquela que a deixava prostrada e pronta a render-se a um Deus? Que Deus poderia tê-la chamado? Para M não havia Deus senão aquele que tinha roubado involuntariamente a J e que não desejava conhecer assim tão de perto. Que Deus perdoaria esta dose de humanidade? A mulher-cantora senta-se. A sua boca está seca e fechada. Estava findo o encontro. J olha para M; M está desfigurada, esta expressão não lhe pertence. Começa um novo aprender, um novo começar. J levanta-se em silêncio, M segue-o em silêncio também. Vão regressar à cabine telefónica, muito embora sejam incapazes de expulsar uma palavra entre os lábios. Sabem simplesmente que é esse o caminho e reconhecem claramente o acto de amor a que se tinham exposto: J revela o segredo, M revela a sua impotência perante a revelação. O amor devasta-os, os corpos estão doridos, doridos de uma dor física, cansados de uma viagem que consumiu os músculos. A festa do amor manifestou-se: M e J amaram-se dentro da pequena capela, descobriram a intimidade. Caminham de novo para a cabine. A chuva continua a cair. Estão encharcados, talvez de lágrimas. Depois do longo trilho travado sempre em silêncio, chegam à rua da espera, da comunicação em bruto. A cabine está vazia: refugiam-se nos dois metros quadrados de fé. O auscultador do telefone está fora do descanso. Ouve-se um (piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii) contínuo. Abraçam-se. Dançam devagarinho, quase nem sequer se mexem. A fé moveu os seus corpos para a (fe)sta.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

brincos - de - princesa

O Dali pensou na boca, depois na cara e depois num sofá que é uma boca. O Dali pensou no sofá-boca. O sofá transformou-se num ícone. O ícone transformou-se em merchandising. O merchandising são uns brincos sofá-boca. A princesa posso ser eu. O Zé pensou na princesa e ofereceu-lhe os brincos sofá-boca.


A história dos brincos de princesa
FIM

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Questão irresolúvel: o que é a performance?

A arte da Performance - Roselee Goldberg
Bom começo para o esclarecimento de algumas dúvidas


Iniciei ou re-iniciei as minhas andanças teatrais no pequeno yellow submarine. Não estou especialmente feliz com aquele espaço, mas estou absolutamente disponível para trabalhar, aliás estou absolutamente com vontade de o fazer. Quero envolver-me à séria, como diria o outro...
No meio de todas as implicações burocráticas que implica o recomeço de alguma coisa, fui agradavelmente surpreendida - e ainda não sei se é este o adjectivo - pela questão/desafio a que me vou propor neste início de fim de percurso académico: o que é a performance?
Durante os próximos dois meses vou andar mergulhada nesta temática, muito provavelmente explorando perspectivas do ridículo, do sério, das convenções, dos rótulos, das possibilidades, dos limites e das multidisciplinaridades artísticas presentes nesta forma de fazer teatral (? - mais uma vez não sei se é esta a palavra a ser utilizada).
Estou assoberbada de dúvidas relativamente aos próximos meses e não espero ver respondida nenhuma questão de forma estanque; espero antes encontrar caminhos para possíveis respostas. Hoje, pela primeira vez há muito tempo, senti que ter expectativas sobre as coisas não é necessariamente uma coisa negativa; pode ser antes um estímulo, neste caso para a criação artística.
Estou carregada de vontade de trabalhar e carregada de medos: espero não enlouquecer com ambas as coisas. Se bem me conheço a faceta workaholic vai manifestar-se e os medos vão ser, em ocasiões cruciais, preconceitos quase impossíveis de ultrapassar. Gostava muito de me comprometer dizendo que não ultrapassaria os limites do razoável em nenhuma das situações.
Na verdade, hoje, agora, quero mesmo começar a trabalhar...

domingo, 21 de setembro de 2008

Dois metros quadrados de fé: os inevitáveis encontros de Maria e José

J caminha em direcção à cabine telefónica. Caminha devagar, invadido, pela primeira vez na sua vida, pela sensação de jogo perdido ou a perder. Nunca na vida teve nada a perder, absolutamente nada. Era a primeira vez que havia alguma coisa verdadeiramente importante em jogo: uma espécie de amor impossível ou inevitável, uma fé roubada por uma estranha que agora amava, um Deus perdido. Eram muitas coisas que J podia perder e era muito pouca a vontade que tinha em viver sem elas. J caminha devagar, J está abandonado.
M está na outra ponta da cidade, desconhece a vontade de J em revê-la; conhece porém a necessidade quase mórbida de o reencontrar. A cabine telefónica onde esperara já uma vez é o único espaço possível para o encontro, é também o único espaço que apesar de tudo lhes era íntimo: mais do que a rua estreita onde se cruzaram brevemente pela primeira vez. Aquele espaço de comunicações em bruto, era o espaço onde a fé de ambos tinha sido depositada, era o único espaço possível para o amor de M e J.
M caminha em direcção à cabine telefónica. Caminha devagar, invadida, pela primeira vez na sua vida, pela sensação de não ter nada a perder. Tivera muitas coisas felizes na sua vida, tranquilas porém: nunca M tinha entrado em ebulição. Era por isso, também, a primeira vez que havia alguma coisa verdadeiramente importante em jogo: um homem perturbador e sujo, a posse de um Deus que não lhe pertence, a fé nas pessoas, nos seus compromissos com a vida e com o mundo. M caminha devagar, M tem esperança.
Mais uma vez, o cosmos trabalha em prol deste encontro inevitável. Desconhecendo caminhos alheios, M e J vão encontrar-se na cabine telefónica; vão encontrar-se pela segunda vez movidos pela fé que têm; pela fé que têm um no outro. Na mochila de M está a sua máquina fotográfica; na de J o avental ensanguentado do restaurante. Chove, dia de quase-Inverno.
J chega à cabine telefónica. Entra, protegendo-se da chuva. Está determinado a ficar à espera de M. M não tarda a chegar.

-J: (em sussurro) Aparece M, aparece. Estou aqui como te prometi. Foram umas horas, uns anos?, de atraso. Vem M, corre para os meus braços. Não há tempo, pois não M? Partimos todos os relógios das ruas da cidade, des-sincronizamos as horas, os sinos nas igrejas já não tocam. Aparece M, aparece que te vou contar os meus segredos, vou levar-te a um espaço que é só meu e que depois será nosso. Vou levar-te ao espaço que é a minha casa e ao qual não posso regressar enquanto não me devolveres a memória. Esqueci o caminho M. Aparece para que eu possa regressar.

M entra na cabine telefónica. M e J estão apertados, reduzidos a menos de dois metros quadrados. Os vidros ficam embaciados com a respiração de ambos. Não há muitas palavras que possam ser ditas; apenas surpresa pelo re-encontro não combinado. Suspensão. Ataque de M.

-M: Estás aqui.

-J: Consegui cá chegar. Quantos anos passaram M?

-M: Dez, talvez vinte. Umas horas, poucas. Não sei. Não há tempo, será assim?

-J: Não sei como é. Levaste tudo o que tinha na mala, só resta o avental cheio de sangue. Se o tivesses visto, tê-lo-ias levado, estou certo que sim. Levaste tudo M, levaste tudo e eu não corri para te apanhar. Agora sou eu que te levo M, vou levar-te até onde te quero levar. Vens comigo, M? Vem comigo, que são só segredos, só histórias. Nada mais.

-M: Vou contigo J. Não me peças que vá. Iria mesmo que não mo pedisses. Fiquei horas à tua espera nestes dois metros quadrados. Horas à espera de te ver chegar. Porque não vieste tu, J? Tinham sido tantas as tuas promessas naquela rua amontoada sem sentidos. Estava certa do re-encontro. Mais certa agora que aqui estás. És um ser estranho, não conheço as fissuras do teu corpo, as cicatrizes marcadas durante a infância. E ainda assim vou contigo e sinto o teu hálito perto dos meus lábios. Tens os lábios grossos J, os caracóis desalinhados sobre a testa. Leva-me J. Leva-me onde me queres levar.

J abre a porta da cabine telefónica. Sai em silêncio. M segue-o.

-J: Vou levar-te ao meu Deus...

Silêncio.

sábado, 20 de setembro de 2008

fé n.º 38: os inevitáveis encontros de Maria e José

-J: Pudesse eu encontrar-te agora M. Conhecesses tu o meu amor, os meus lugares de culto. Eu queria levar-te ao único sítio onde encontro o Deus que me roubaste. Se viesses comigo, reencontrar-vos-ia aos dois. Levaste a minha fé, M. Levaste-a, M. Exijo que ma devolvas, exijo que me devolvas a possibilidade de sonhar contigo. Para onde levas tu a minha fé, que queres tu dela? É minha M. Arranja a tua; arranja uma fé que te sirva. Arranja uma capela acimentada no meio da realidade citadina onde as pessoas choram quando se canta em playback. Arranja uma capela minúscula onde são dez os crentes que lá entram, não mais que dez. Arranja uma capela que suporte a tua ausência e não invadas um espaço que é meu: não permito que entres no meu balcão imundo cheio de restos; muito menos permito que invadas a minha capela, o meu único devaneio antes da loucura das noites loucas, o meu único segredo antes das mil mulheres que me caem nos braços. Fico aqui, a chorar pelo teu amor, ansiando o segundo em que heroicamente invadirás todos os meus espaços, mas não permito que o faças. Estou velho para que me queiras mudar, estou velho para querer mudar. Dancei noites demais sozinho como um bicho, estive só o tempo todo que foi tempo que passou, a única coisa que me pertencia era Deus, esse Deus que desconheço de onde vem: vieste tu M, vieste tu arrancá-lo de mim. Com que direito M? Com que direito vieste de encontro ao meu segredo? Vou procurar-te pela cidade inteira, vou arrancar-te das estações de metro, dos comboios amontoados, vou entrar em todos os cafés, em todos os becos, em todos os sítios de culto que não me pertencem e vou encontrar-te, vou encontrar-te para saber que não espalhaste a notícia da minha fé: há afinal esperança em mim para a mudança. Quando te encontrar M, vou levar-te comigo, vou desafiar-te ao encontro do meu Deus roubado que te pertence agora, mas que é um estranho não mais do que isso. Quando te encontrar M, hoje mesmo ainda na cabine telefónica onde te deixei, vou levar-te à minha capela. Vou revelar-te a única coisa em mim que não repugna, que não cheira a comida. Vou procurar-te, agora mesmo. Sei que não estás longe, a maresia anda por perto, tenho os lábios salgados dos últimos beijos que trocamos. Vou encontrar-te na cabine muda. Corre M, corre para lá.

Desta vez serei eu aquele que espera...

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

a guerra e o Homem: os inevitáveis encontros de Maria e José

M deixara a sala escura e húmida onde encontrara o Homem. Lembrava-se vagamente de umas paredes azuis. A luz era pouca, talvez uma cave, um sótão. Era difícil situar a sala, as memórias dissipavam-se rapidamente, como se o encontro não tivesse acontecido: a memória única que permanecia em ebulição era a de umas paredes altas e azuis que consumiam todo o espaço. Onde? M seria incapaz de regressar lá sozinha.

Pela primeira vez M sentia uma certa inquietação ao pensar no Homem: ele falara-lhe de uma guerra que ela não desejaria travar com ele. Preferia antes trava-la com J, mesmo que ele preferisse um acordo de paz. Imaginava-se em cima de um tanque, de um gigante tanque a entrar na copa de um restaurante saqueando copos e pratos, garrafas de whisky adulterado e facas de ponta aguçada. Imaginava como isso perturbaria J e que isso o faria segui-la até ao fim da viagem. Mas J estava desaparecido e M sentia a angústia dessa ausência. Não podia recuperar nada que lhe pertencesse. Para além de um rendez-vous ocasional, M apenas tinha esperado por J em frente a uma cabine telefónica. Sentia-se terrivelmente apaixonada: ele era um homem, as mãos dele suavam e o cabelo desalinhado caía-lhe sobre a testa, tinha os lábios grossos e um corpo sem fim. Não havia poesia nos seus gestos, muito menos encantamento. Todo ele eram batalhas de dureza e virilidade infantil por travar e isso transformava M numa mulher de armas, pronta a atravessar corpos com tiros de pólvora quente, pronta a deixar-se abandonar no meio de tantos outros cadáveres mutilados pela guerra.

J não aparecera com as armas, tinha faltado ao compromisso de honra de um soldado. M tinha todas as armas nas mãos; ninguém para matar.

Entretanto o Homem esperava M bem de perto com uma granada na mão.

-Homem: Quando me encontrares numa rua estreita serei o primeiro a dar-te a mão. Sempre te soube pronta para um mergulho num corpo desconhecido, sempre te conheci querendo a grande guerra eclodindo nos teus cabelos. Agora estou aqui, regresso aos teus passos e tu esqueceste o meu nome. Eu não me recordo também. Apaguei o meu nome para poder dar lugar ao amor estéril que é o nosso. Não sei o que há em ti que te transforma num voo mais profundo que todas as rosas. Estranha, funda criatura. Enquanto não chegares terei o dedo pronto para pressionar o gatilho. O relógio está em contagem de-crescente. Só faltam dez estações até chegar ao centro da cidade envenenada. Declaro-me em guerra com o amor...

das minhas indecisões

Não sei o que fazer com a Maria e com o José.
Talvez devesse matá-los. Era simples.
Preciso de inspiração.
Preciso que eles me apareçam diante dos olhos...

aos meus lutadores






Nunca ninguém nos disse que ia ser fácil.

Mas eu acredito. Acima de tudo, acredito-vos...

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

os desassossegos de maria: os inevitáveis encontros de Maria e José

M deixara a cabine telefónica há horas. Estava cansada de esperar pelo homem dos golpes nas mãos. Teria lá ficado a vida inteira se pudesse, mas cedo aprendera que uma boa dose de egoísmo era a única forma de se manter sã. Estava estranhamente disponível. O aperto da ausência transtonava-a, mas não a matava como poderia pensar. J não aparecera como prometido, J aniquilara a possibilidade do rendez-vous. M estava à espera que esse fosse o procedimento único e inevitável das coisas. Cedo demais, todas as coisas se mostraram inevitáveis para M.

M conhecera em tempos um outro homem, o único homem aliás que M conhecera antes de J. Era um homem como outro qualquer, nada nele era tão verdadeiramente fascinante como em J. Este homem era só um homem. Vestia calças de ganga como qualquer miúdo imberbe. Nada nele havia de inquietante; não cheirava a óleo como J, nem usava uma mochila às costas cheia de roupa ensanguentada. M seria incapaz de o fotografar se quisesse, não encontrava nele entranhas suficientes, loucura suficiente para o fixar. Contudo, este homem que era só um homem teria sido incapaz de deixar M numa cabine telefónica à espera; na verdade nem M esperaria por ele. M teve uma vontade súbita e inesperada de encontra-lo depois de ter esperado e esperado em vão por J. Estava disponível, para quê nem ela própria terá percebido.

O desencontro de M e J transformara-se no encontro de M e do homem. O homem sem nome, sem cheiro, o homem das zero inquietações.

-Homem: Onde está a guerra que foi o nosso amor?

-M: Não me lembro das nossas armas; não me lembro de ter travado essa guerra.

-Homem: Todas as noites chegava em cima de um cravo para te apanhar à beira rio. Tinhas os cabelos compridos e menos vinte anos. Comias peixe ao pequeno-almoço e subias para o tanque pronta para me atacar a qualquer instante. Havia cólera ardente nos teus olhos. O teu desamor queria matar-me e isso fazia-me querer estar perto do epicentro da batalha, das tuas coxas, do vinho derramado no teu umbigo.

-M: Não me lembro desse vinho; mas lembro-me dos vinte anos que passaram. Terão sido vinte os anos que passaram? Não foram menos dez que esses todos, menos vinte, não foi ontem mesmo que te conheci?

-Homem: Antes o teu cabelo era comprido, era vinte anos mais comprido do que é hoje...

-M: Não me confundas. Foi ontem, foi ontem que te conheci. Eras precisamente o mesmo homem que és hoje. Não cheiravas a coisa nenhuma. Parecias morto. Hoje pareces tão morto como ontem. Não podes estar morto há vinte anos.

-Homem: Há vinte anos fazias amor comigo. Há vinte anos...

-M: Não digas mais nada, peço-te. Faria amor contigo se tivesses cheiro. Talvez assim pudesse conhecer o teu nome. Prefiro ser um homem sujo a uma mulher que se deita numa cama lavada. Talvez me entendesses se soubesses o que é ter as unhas cravadas na terra, o ventre sujo pelo amor de um homem. Talvez compreendesses o que são vinte anos se os tivesses vivido dentro de uma casa devoluta cheia de infecções.

(Pausa)

-Homem: É bom falar contigo.

-M: É bom. Se soubesse o teu nome, fazia amor contigo.

M sentia-se agora um pouco como J: desassossegada, só.

-M: Devolve-me o meu Deus, J. Devolve aquilo que me tiraste...

domingo, 14 de setembro de 2008

sobre a amizade em tempos de solidão

Obrigada...

resumo bíblico: os inevitáveis encontros de Maria e José

M e J vão continuar desencontrados por mais dois mil anos.

a problemática da solidão: os inevitáveis (des)encontros de Maria e José

-J: Quem és tu M? Quem és tu? Vieste desorganizar a minha vidinha simples. Vieste virar o rumo da minha solidão. Quero passar noites em antros cheios de fumo, cheios de gente perdida em garrafas vazias, quero passar noites com mulheres nenhumas, quero não conhecer os nomes e o cheiro dos seus cabelos. Vieste tu, M, desorganizar a minha solidão. Os meus antros do avesso. Cheiravas a mar quando te dei a mão, o teu cheiro era profundo. Eu não posso ir contigo onde me queres levar, não posso dar-te a mão e ir contigo onde me deves levar. Vou fazer-te mal, vou rasgar-te a pele todas as noites, fazer-te filhos lindos, cortar-te os cabelos negros e hei-de ir embora todas as manhãs antes de acordares, hei-de deixar-te todas as manhãs sem coisa nenhuma. Não me vou apaixonar por ti. Estou seco, velho, não há em mim uma gota de amor. Levaram tudo. Não penses que te vou amar, nem penses sequer que eu posso deixar-te estendida nos meus braços durante a noite. Hás-de acordar só, tão só como eu me sinto todas as noites. Tão só como o alcool que me tolda todas as noites. Experimenta estar só M. Experimenta estar desesperadamente só. Percebes agora M? Persegues como é angustiante não ter um sítio para cair quando já se morreu? É assim que estou, apodrecido e coberto de vermes. Agora não, não vou contigo para lado nenhum. Tu cheiras a mar e eu estou morto. Não te vou encontrar para te matar também. Não posso matar os teus olhos. Não posso aniquilir agora a possibilidade de estar contigo. Estou morto M. O oxigénio acabou dentro daquele parque de estacionamento. Consegues perceber porque não foste salvar-me? Vou perder-me com mais cem mulheres se não vieres salvar-me M. Vou fazer-lhes os filhos todos que devia ter-te feito. Vem salvar-me M, que estou só, tão mortalmente só. Não sinto nada. Só me lembro do teu cheiro, da novidade do teu cheiro. Vou morrer sozinho dentro do parque de estacionamento. Tenho o avental na mochila coberto de sangue, de vinho e de lábios. Lábios teus... e tão só que estou, tão só afinal. Diz-me onde enfiaste tu o nosso Deus? Está aí alguém? És tu M, és tu que me matas, que destróis a minha fé? Mataste o meu Deus M e por isso não vou contigo para onde me queres levar. Estaremos, por agora, desencontrados. Desencontrados até que devolvas o que me tiraste. Devolve-me Deus. Devolve M, devolve...

sábado, 13 de setembro de 2008

as más decisões: os inevitáveis encontros de Maria e José

J está sentado. Bebe café. Pergunta-se porque não terá aparecido na cabine telefónica da rua com sentido único onde encontrara M pela primeira vez. Pergunta-se que motivo é este, tão grande, tão monstruosamente grande que não permite que o amor lhe invada as veias secas e as encha de fogo. J continua sentado. M continua à espera. Resolução impossível.

as impossibilidades: os inevitáveis encontros de Maria e José

-M: Onde estás tu J? Dizes-me onde andas tu? Fiquei à espera na cabine telefónica, o centro transpirava gente cansada e ainda assim esperei na cabine telefónica. J que é feito de ti? Que é feito do teu avental sujo das entranhas do mundo todo, que é feito dos golpes das tuas mãos provocados pelas horas intermináveis que passavas na cozinha a cortar pedaços de carne vermelha, que é feito do teu estado de transe e dos olhos revirados enquanto passavas, perdido no meio dos pratos imundos empilhados no balcão? Esqueceste-te, foi, esqueceste-te que iria amanhecer em poucos minutos e que eu esperava na cabina telefónica? Cretino. É isso. Fizeste parar a Primavera, disseste-me que ela iria desabrochar em cima dos meus ombros e fizeste-a parar como uma faca que rasga um ventre maduro. J, tens o avental coberto de sangue. São as tuas mãos secas e as minhas veias inchadas que te mancham o avental. J, estás a suar, tens o rosto coberto do gotas espessas, tens a cara velha e rugosa cheia de gotas espessas. São as tuas promessas vãs e a minha feliz ingenuidade que te fazem suar? Cretino. Cretino! Corre, vamos, corre para o centro da cidade, para os tubos que ardem debaixo da terra. Corre para dentro do parque de estacionamento e envenena-te um bocadinho mais, envenena-te até ser último o último rasgo de oxigénio. Não esperes por mim J, eu não vou correr para te salvar. Vou ficar sentada, na cabine telefónica, embriagada com a imagem do teu avental imundo à espera, sempre à espera de te ver chegar. Vais estar sozinho quando te faltar o ar e eu não vou correr. Estou mal calçada para correr. Quis pintar a boca de vermelho para te ver chegar e por isso não posso correr: não há correspondência (im)possível. Destruímos o rendez-vous poético que o universo nos ofereceu: tu por seres cretino, eu por gostar da tua cretinice. Agora a única imagem que me assombra é a dos teus braços mortos dentro de um lava-louças colossal tentando dar vazão às centenas de pratos consporcados pela boca faminta dos homens da cidade. A cidade parece morta quando não passas, a cidade cheira a canos. J, não tenhas pena de mim, não te atormentes. A minha juventude não me cega nem me rasga o peito. Sei bem lidar com a espera. Estive a vida inteira à tua espera... Não quero compaixão. Quero antes afogar-me no Tejo bafiento que invade a minha janela do quarto e imaginar-te sufocado num parque de estacionamento enterrado debaixo da cidade inteira. Trouxeste o teu avental, J? Querias passá-lo por àgua e estendê-lo ao sol? Esperas ver findas essas manchas? Foi vinho tinto, meu amor, foi vinho tinto que derramaste nesse avental, foi o vinho tinto que os meus lábios tocaram. Não te vês livre dessas manchas tão cedo. Eu vou desaparecer se não chegares à cabine telefónica mas no teu avental ficará impregnado o gosto da minha saliva. J, que é feito do nosso rendez-vous? Amor nenhum, J, amor nenhum.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

lisboa tem mais encanto na hora da despedida: os inevitáveis encontros de Maria e José

Um rendez-vous citadino. Sim, é esse o termo. Dois estranhos que desconhecem as combinações cosmológicas, uma cidade, um rendez-vous em potência. Sim, é esse o termo. Nas inevitabilidades da vidinha simples existe sempre um rendez-vous em potência. Os estranhos: dois estranhos perfeitamente vulgares: M (chamemos-lhe assim), visual hardcore, olhar angelical. J (chamemos-lhe também assim), visual desportivo, barba por fazer, 1,90m, olhar indefinido.
M e J acordaram desconhecendo a partida do cosmos: tudo se encaminhava, como qualquer coisa que é inevitável, para o acontecimento: O RENDEZ-VOUS ainda em potência, seria nesta altura do dia (provavelmente 9:40 da manhã) um pequeno embrião fecundado há escassas horas, ou seja, o resultado do amor fértil de dois seres embriagados pelo odor de uns lençóis amarrotados. M vive junto ao rio; é artista. J vive na Graça; empregado de restaurante.
O céu estava escuro. Manhã acinzentada lembrando mais Porto que Lisboa. M procurava unicamente inspirações para poder parir mais uma obra pós-moderna cheia de significados ocultos por uma linguagem intelectual e apupada (apupada era aliás uma palavra pela qual M nutria um grande carinho). J entrava no restaurante e procurava no cacifo comum o avental oleoso, que cheirava a batatas fritas e a cebola (cebola era aliás um vegetal pelo qual J nutria grande repulsa). M estava cheia sonhos, J perdera a vontade de sonhar. Nada faria acreditar que a distância geográfica e os objectivos díspares pudessem, de alguma forma, cruzar-se numa cidade tão cosmopolita e hoje tão cinzenta.
M passou horas a olhar para estranhos: nem as putas, nem o vinho verde a inspiraram. Não houve um olho que a inquietasse. J passou horas a olhar para estranhos: nem as putas nem o vinho verde o fizeram sentir-se menos oleoso. Não houve uma omelete que não ficasse queimada. Exaustos, mortos de fadiga, decidiram que a inevitabilidade que o tédio lhes oferecia estaria prestes a findar. M não regressou nessa noite ao seu minúsculo T1 com vista para um Tejo sujo e bafiento que pagava arduamente. J não regressou às suas àguas-furtadas centenárias onde chovia torrencialmente todos os Invernos. Tomaram a inevitável decisão de mudança: embuídos pela vontade de subversão, caminharam, ambos sem rumo concreto; esperavam o comboio na paragem do autocarro.
Rua estreia sentido único: M segue a nortada, J vem de oeste. Grande tumulto, a multidão circunda a rua onde vai ser parido o rendez-vous. Uma maçã rola sobre a estrada. M encontra o sentido poético que hoje lhe faltara tão claramente e que a conduzira para aquele sítio tão estranho, tão pouco íntimo: corre tentando apanhar a maçã. Tropeça. Cai. J está no meio da multidão. É esmagado pela maçã, em seguida esmagado por M. Grito. Comunicação visual impossível (gente demais). J estende o braço para apanhar os cacos de M.

-J: Estás suja...

(silêncio)

-M:Cheiras a cebola frita...

-J: Foi a coisa mais íntima que ouvi hoje.

O cosmos fizera a sua parte. O rendez-vous em potência funcionára. M e J terão de fazer o resto. É fácil chegar a Lisboa, ser recebido pela multidão. Pior é encontrar o caminho de volta para casa...

há um sonho que tenho muitas vezes


A sensação de estar perdida costuma chegar durante a noite, quando o son(h)o já se apossou do corpo e de qualquer possibilidade de fuga. Assemelha-se às intermináveis viagens de carro no pico do Verão em que o discernimento e a paciência se esgotam em segundos brevíssimos. Caminho para o encontro das caras conhecidas e após a grande mancha negra vejo-me só, num espaço que me é íntimo, mas só, perdida afinal! Repetidamente tenho esta sensação e dou por mim, passada a embriaguez do son(h)o, recuperando forças para a avaliação racional deste acontecimento. A verdade é que mesmo tendo os grandes olhos abertos, não me sinto mais achada do que durante as minhas deambulações oníricas. Os erros que vamos cometendo, ou os sonhos que ingenuamente alimentamos, não se dissipam tão simplesmente como seria de esperar. O alívio do desprendimento após a viagem não é claro e o limbo não vinca a passagem dos planos. Durmo perdida e acordo perdida. Estou perdida, é simples! Mais simples seria o encontro de um caminho despreocupado e simples, sem paixões avassaladoras, sem compromissos que o não foram. Nesse caso estaria não-perdida e por envolver. Secura tal... Às vezes a secura apetece. Só para não querermos morrer ali mesmo, perdidos e angustiados.

Hoje, porém, não me apetece encontrar nada...

terça-feira, 9 de setembro de 2008

regresso às andanças teatrais





ENCONTROS E DESENCONTROS
NO CAMPO COM O TIO VÂNIA


cine-boa-disposição


Há muito tempo que não me ria tanto!

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

problemáticas da gestão do tempo


Preciso de fazer alguma coisa...

domingo, 7 de setembro de 2008

zé: o amigo das tardes de quarta-feira


Um dia conheci o Zé. Éramos ainda mais jovens do que hoje somos; encontrámo-nos num palco. Os sonhos de cada um eram sonhos comuns, desejos semelhantes. E todos as quartas-feiras, após a grande viagem, o Zé esperava por mim para podermos partilhar as angústias adolescentes e semanais: todas as quartas-feiras eu e o zé nos sentávamos ao sol, pés descalços e conversávamos até ao começo da noite, hora em que a inevitabilidade do comboio se aproximava. Um dia o Zé tomou uma decisão e partiu para voos outros, não distantes dos meus, apenas geograficamente diferentes. Então o Zé começou a desaparecer aos pouquinhos, porque assim é a vida e porque assim aconteceu. Pouco a pouco encontrava o Zé mais distante de mim, nunca ausente, embora menos distante da boa memória que eram as conversas de quarta-feira. Passaram quase quatro anos e reencontrei o meu amigo com a regularidade do antigamente. Estranho é perceber como a proximidade engrandece a saudade. Tantas saudades, meu amigo. Hoje a necessidade de partilha permanece tão virgem e honesta como nos dias de maior juventude: conversa sem fim e muita conversa para pôr em dia. O Zé voltou a fazer parte dos dias todos e todos são os minutos em que percebo como é bom trocar com ele as aprendizagens quotidianas. Hoje lembro-me das promessas: as quartas-feiras que fizeram parte da juventude mais casta tornam-se agora jantares e tertúlias em veias cheias de fogo.

Está prometido!

da criatividade


Invenção de novo vocábulo para o enriquecimento do léxico português:


medo + merda = MERDO


(...)

dos encontros ou a história da red shoes


Fim de noite, deu-se o encontro; sapatos vermelhos e caracóis espigados. (In)esperado. Da expectativa nasce o desejo de partilha, nasce o desejo de troca de qualquer coisa que dê vazão à necessidade. Sapatos vermelhos esperava caracóis espigados. Esperava ter uma tesoura à mão para resolver o problema. Esperava acima de tudo arranjar outros problemas que permitissem a perpetuação do instante. (Instantâneo)... No fundo o encontro podia muito bem ser tão fugaz e rápido como o trabalho do microondas que solucionára tantas vezes, a falta de tempo prático para o almoço. A poesia parece finda perante cenário tão suburbano; parece findo o amor. O amor estava enterrado no Tejo e sapatos vermelhos, à porta do quarto, lia estórias loucas de gente que continua a procurá-lo em sítios bizarros. Bizarra situação: o Tejo ali tão perto... amor nenhum! Dos encontros tudo fica desarrumado: guiões riscados, deixas cortadas, marcações (de vida) em aberto. A expectativa torna-se, de repente, num entrave para o disfrute da liberdade. Pior, a expectativa destrói a possibilidade. O encontro, porém, permanece vivo. Depois do abandono, regressa o desejo, a motivação da busca. Não há caminho mais tumultuoso que aquele que incessantemente buscamos.

O Tejo afinal perde-se ao longe, viagem infinita: sapatos vermelhos na caixa, caracóis cortados: dos encontros tudo fica...

sábado, 6 de setembro de 2008

P.S. de dia 5 de Setembro


Hoje vi pessoas de quem gosto muito a lutar por um sonho... tão cheias de esperança que estavam.

Tanta fé em tantos sonhos...

Do regresso à normalidade...


Há dias em que a transgressão das regras parece ser a única possibilidade para o encontro do equilíbrio. Os dias têm estado do avesso: casa cheia em dia de desaniversário, lembrando as loucuras de Alice no país das maravilhas; corrida desvairada para além do Tejo em dia de aniversário, esquecendo as expectativas dos vinte anos sonhados. Dias loucos, o mundo às avessas. O feliz encontro da transgressão permite o regresso à tranquila normalidade que nos acompanha. Os dias poucos normais fazem-nos querer voltar a casa, sabendo que a visão do Tejo em altas horas, madrugada fora, voltará em breve, descomprometida e embriagada. Ah! ... a embriaguez dos loucos por amor... Onde deixei eu a pequena inocência dos sweet little sixteen?

Estranhamente feliz, regresso às mãos que me geraram...

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

dia do avesso


Hoje não faço anos mas tenho a casa cheia de amigos e um bolo com velas.

Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida


O caminho até casa foi criado depois de muitos ventos de norte. Perdemo-nos tantas vezes. O regresso é simples; recomeçar pelo trilho gasto, mas sempre em direcção ao ninho que nos gerou. Eu, regresso hoje à casa que foi um útero. Regresso para o reencontro dos irmãos queridos e das feridas mal saradas. Começou a viagem, a re-viagem. Para onde caminhamos nós? Sempre para casa...