segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A guerra (em crise) e os 1679 dias para o cessar fogo

Não. Decido não renunciar aos prazeres da carne. Que importa , que importa se as noites mal dormidas desregulam o pacífico decorrer das horas? Quando a humidade se entranha nos ossos, fico certa de que a vida existe naquele pátio e em nenhum outro lugar; num acaso que ainda agora me intriga, vejo-me nesse pátio, o cabelo húmido e os olhos sonolentos. Ao fundo aquela voz familiar que vagueia em recordações da infância. Já nesse mesmo dia me tinham dito que a infância era um lugar vazio e longínquo onde apenas ecoavam, espaçadamente, algumas memórias dos cheiros e da areia enfurecida pelos ventos de mar. Mas ali a infância era presente, e entre o desejo de ouvir a àgua cair naquela banheira ferrugenta ou de dormir até à hora em que as pessoas se agitam, desenhava-se uma linha muito ténue. A solidão já não é um lugar estranho e mesmo ali, naquele pátio vivo onde toda a vida se concentrava, dificilmente acreditei nos companheiros de viagem. A visão atordoada pelo vinho, pelo delírio da noite, pelo enfurecimento do cio traçava, como sempre, esse caminho solitário onde a voz parece rouca ; onde não há descanso para as mãos, onde o encontro insiste em mostrar-se impossível. Tudo isto dentro e fora de mim, mais a recorrente lembrança dos excessos em que não se pouparam os corpos e ainda assim só, profundamente só, entre a bebedeira e o descrétido, entre o sonho e o sexo. O cimento calejava a coluna porque o corpo acabaria por ir cedendo, lentamente à gravidade. Ali deitada, não consigo agora distinguir as coisas verdadeiras das falsas: as incríveis odisseias da imaginação e aqueles factos que ainda assim nos prendem à terra. A água corria como uma mulher louca e em momentos brevíssimos recordei o homem da maçã de adão que eu beijara com a língua, as guerras em tanques militares bem travadas por homens bravos, as balas perdidas, as espinguardas. Entrecortando as recordações, a voz longínqua do homem dizendo: por desinspiração artísticas declara-se o cancelamento deste indivíduo por tempo indefinido uma vez que em nada tem contribuído para o desenvolvimento da arte tendo antes sido uma objecção veemente a toda e qualquer produção artística profícua para a sociedade. Em crise. A crise. Crise geral, digo. Total e totalitária. Faltam ainda 1679 dias para o cessar fogo. Vieram decidios a matar e a morrer e aqui não há como escolher. Saltar para o tanque e esperar que as espinguardas fiquem vazias. São cinquenta as horas necessárias para a descoberta da verdade. Quais utopias, eu quero é ver o sangue, o nosso sangue a correr por esse amor apregoado. Ai! O delírio do vinho desfoca a imagem, o som da fonte ao longe, o discurso é metamorfose de alcool e desejo. Aqui e ali, mais recordações do amor e a voz incessante e ruidosa que insistia em discursos utópicos: partamos para a destruição do amor como o conhecemos; partamos para a destruição de tudo, procuremos o nada; que dái se reconstruam as casas, a memória e as culturas, que se atribua novo sentido à arte. Destruamos aquilo que foi mal edififcado, os canhões as balas as guerras por travar. E ali estava ele, em cima de um tanque de guerra com uma colher de pau na mão apregoando o amor, conquistando os ateus. Trazia um chapéu com rosas de papel vermelho e eram tão verdadeiras como o meu sangue. A fonte pinguava como o sangue da menstruação. Cá dentro ía doendo tudo. Quando finalmente sucumbia ao sono a lembrança dos 600 degraus até chegar a casa. As garrafas vazias não podiam ajudar ao equilíbrio. E no meio de tanta solidão, a descoberta da mão firme e viril que veio cobrir os dedos inertes pelo vinho. Abraços e mais abraços. Dois desejos cumpridos e uma moeda que não tornaremos a ver. Depois os outros, os que não estando lá eram afinal a fonte e o pátio. O sonho que não é utopia. Vieram com o vinho e por aqui ficaram. Os degraus e o vinho acabaram, a fonte já só se ouvia ao longe, menos um cêntimo na carteira. A crise da confusão do excesso e no fim da madrugada o encontro do batimento cardíaco justo e comum com as horas. A certeza de que o fogo não cessará enquanto o sonho não for cumprido. Na fonte, as garrafas vazias; o vinho no cimento.

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