quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Suor e consequências

Está calor. As coxas suam. Tu pareces um cadáver pálido, sem boca nem norte; sem olhos porque foram comidos pelos ratos. A visão enevoada da tua cara faz-me pensar que perdi o discernimento. Sabes como me chamo, ou és apenas um cadáver roto na minha sala? No outro dia perdi o teu nome. Estava no bolso, no meio da papelada inútil que se acumula nos bolsos e acabou por ir tudo para o lixo. Também não me fazia falta. Saber o teu nome porquê se nunca mais te vejo na vida? Caíste do barco com tanta exaltação em que fervias sobre a mudança e a fé. Como não tinhas nenhuma foste traído pelo entusiasmo. Que te tenha sabido bem o banho, melhor a aflição. Tu e o teu nome perdidos para sempre: na lixeira e no mar alto. Não te dá vontade de rir? De rir comigo quando penso nestas coisas? Tu fazes-me rir quando me beijas a cara com pressa, como uma criança que nunca beijou uma boca. Mas eu conheço-te malandro, tu e a tua canção de mariola. Pensas que me enganas falando da liberdade quando já se envelheceu tudo? Não. Conheço bem a tua canção de mariola, já disse. E ainda assim, não deixas de parecer um miúdo quando me beijas a cara com pressa.
Está calor. As coxas continuam suadas. Como depois do sexo. Agora diz-me, quando te encontrarem a boiar junto à costa saberão que fui que te empurrei? Saberão isso porque me beijaste antes de cair? Ou saberão simplesmente porque sim, porque essa seria a única possibilidade? Cúmplices na tua ou na minha desgraça; no teu ou no meu desejo? Tantas mentiras e nem por isso menos entusiasmo. Serias capaz de nadar se o mar fosse de verdade ou ias deixar-te afogar como fazem os fracos sem sangue? Bebeste o que restava do meu porque o fui doando a todos os que passaram. Já não tenho sangue, nem cabelo, nem palavras na boca para as dizer. Só tenho calor e mesmo que me tente lembrar do frio do chão de tijoleira nas minhas costas o calor não passa. Como se fizesse amor contigo há muitos dias, anos talvez, sem nunca parar. Nem para cigarros. Fumo quarenta por dia, sabes? Por isso é que a boca amarga quando me beijas. Não me pedes nada e entre nós isso é recíproco. É, na verdade, a única coisa bonita que tivemos juntos. Nunca pedimos nada um ao outro. Mesmo quando a tua palidez te fez desfalecer na minha sala.
Está calor. Tenho as coxas e as mãos suadas. Escorrega-me tudo. Já parti dois pratos: o que devias ter levantado antes de morrer e o que eu devia ter levantado antes de morreres. É esta porra deste calor que faz cair tudo das mãos. Até tu que estavas nos meus braços me caíste à água. Eu pensei empurrar-te mas não quis empurrar-te, percebes a diferença? Por isso, posso dizer que me escorregaste por causa do calor e do suor das mãos. Ou achas injusto? Tu que me bateste com esses braços de homem forte mil vezes sem nunca deixar marca; tu que me deixavas à espera durante a noite para que talvez chegasses, pálido e suado de outras mulheres? Eu sempre soube que daí vinha pouca coisa, ou nenhuma sei lá. Mesmo naquele dia em que corri por causa da faca, vieste salvar-me? Deixaste tudo para me proteger? Nunca. Eu que me salve sozinha que se já posso dar beijos na boca também posso defender-me. Deves ter tremido de entusiasmo só ao imaginar a faca a trespassar-me a pele. No meio dessa miragem viste algum sangue? Diz-me camelo se viste algum sangue, porque se viste o meu não era te garanto. Bebeste-o todo porco! Tinhas sede porque estava calor e vá de beber o que era meu.

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