segunda-feira, 23 de março de 2009

Vem buscar-me que não durmo

Acendo a luz porque desaprendi a viver no escuro. Saltava-me o coração para a boca sempre que o candeeiro do quarto adormecia. Desaprendi a viver no escuro porque era essencialmente controladora. Talvez não. Talvez fosse antes manipuladora das minhas verdades, à falta de desmembrar as verdades do mundo. Era crescida quando a luz se tornou fundamental para a minha sobrevivência. Estoirei os miolos muitas noites por não saber o que estava debaixo da cama: confirmar se as janelas estavam bem fechadas, certificar-me de que o quarto estava vazio quando me deitava, ligar todos os aparelhos que emitissem som ou luz para me manter entretida durante as horas em que o sono não se apoderava do corpo. Não era assim tão difícil. Quero dizer, ficar à espera que o sono chegasse. Não era difícil. Eram precisas horas por vezes. Horas em que continuamente me sobressaltava com qualquer pedaço de madeira que estalasse. Chamei muitas vezes pela minha mãe, pedi-lhe encarecidamente que me agarrasse a mão enquanto vislumbrava a morte chegar. Acho que era por isso que não desligava a luz. Tinha medo de morrer. Medo de morrer enquanto dormia ou simplesmente medo de morrer por ser tão nova e por ter muitas coisas para dizer. Que coisas? Não sei ao certo. Sei apenas que eram muitas. E isso bastava naquelas horas. Sabes como é? Imaginas? Horas, horas e horas durante anos em que a maior preocupação que tens é se a morte chegará naquele minuto, ou no seguinte. Chega até a haver um momento em que vives para não morrer. Em que essa é a tua única preocupação. Desejas de verdade ser imortal. Ser infalível. Ser melhor do que os outros, ter mais coisas para dizer do que eles. Desejas mesmo isso, de verdade. E não apagas a luz porque o medo acaba por alimentar a tua agonia. E sabe bem, sabe bem estar nesse rodopio de tristeza. Ter os olhos marcados a lápis de cor por umas olheiras tão fundas que quase consegues guardar as chaves de casa lá dentro. Sabe bem esse eterno retorno ao pavor das noites em branco e depois nunca mais te vais embora. É como descobrir um vício, como alimentar uma criança faminta. Acabas por desejar que o dia termine para te poderes confrontar com o minuto em que perdes a certeza da tua existência. É isso que te mantêm vivo. Imaginas? Imaginas como é? A única coisa que te mantém vivo é o medo de morrer. Se apagar a luz vou perder o espectáculo e eu comprei bilhetes para a primeira fila. Quero estar viva, mais que viva quando chegar a hora em que a noite me rouba os suspiros. Quero ter a imagem clássica de filme que roda os melhores momentos em câmara lenta com música de fundo que faz lacrimejar. Tenho direito a essas coisas, por isso não durmo. Por isso não há fim para o candeeiro do meu quarto. Imagina que ficamos todos à espera da morte. Imagina que ninguém apaga a luz quando se vai deitar. E imagina que por fim, a morte não chega nunca, para ninguém. Imagina simplesmente que te sobrou a eternidade para ficar à espera, à espera do fim. E se não chegar? E se os relógios se desfizeram ao sol? E se o tempo congelar? E se um dia restarmos todos no mundo, embora enfermos e doloridos pelas mazelas do tempo? Se a guerra não matar ninguém? Se viver for apenas o limbo entre aquilo que conhecemos e uma paragem cardíaca? É por isso que desaprendi a viver no escuro. Porque não posso ver a morte chegar. Porque cega não sinto dor. Porque cega engrandeço a desgraça. É mais fácil punir-me, punir-me por não querer morrer, ou por querer ver que caminho percorre a morte até chegar a mim. Nada disto é trágico sabes? Constato apenas a conservação do medo, de imaginar o caixão a ser esmagado e furado por quilos de terra. Isso não me amedontra. O que me exalta é saber que se apagar a luz não estarei presente para a grande viagem. De luz acesa sempre posso despedir-me dos livros, dos lençóis engomados e do sémen dos homens que me trespassaram furiosamente o útero. Quero ver esse nanosegundo em que me ceifam a respiração. Quero estar presente que é para isso que vivo. E se um dia morrer, quando morrer, estarei certa de que o medo traçou a minha estadia solitária no quarto e felizmente, ainda que morta, vou sentir-me integrada com a restante carneirada que como eu, viveu, vive?, à espera da morte. Contemplo o grande espectáculo, o derradeiro: o hálito da tua boca é quente, o teu sexo encontra a forma do meu. Despeço-me por fim. Adormeço. E novamente regresso à rotina da espera. Passaram o quê, vinte minutos?

SUPER HOMEM D'ASAS D'ANJO


Imagina. Imagina o que é tropeçar num herói defraudado pelo medo. Num herói sem capa e sem poderes. Num herói que fantasia o suicídio como recurso último para a existência. Conheço muitos assim: trocaram a capa que os faz flutuar na estratosfera por umas asas de anjo plásticas compradas numa loja de Carnaval. Mais fácil assim: as consequências humanas são mais suportáveis que a possível ideia de salvar o mundo e os seus queridos entes perdidos. A responsabilidade atrofiou-lhes o desejo. Os heróis? Que é feito deles, das suas virtudes? Aos heróis atribuímos a desgraça, a sua impossibilidade de cumprir com o acordo que estabeleceram com os mortais. Aos heróis foi designado agora o título da idiotice. Eles próprios perderam o desejo de combater. Sentaram-se inertes nas poltronas em casa enquanto a televisão lhes ramificava o cérebro. Deixaram de ouvir os chamamentos últimos de quem vê a morte chegar em câmara-lenta. Eles próprios tentaram ser mortais, para poder morrer. O herói tirou a capa, vestiu os ombros de quem não tem sexo e ainda assim procriou, procriou, procriou sem pudor até criar milhares de heróis desapossados.
Entretanto, caminhos, caminhos sem cessar. Milhares de rotas, milhares e milhares e milhares de rotas, todas as possibilidades. Como escolher? Sem poder não há escolha. Sem escolha não há fim para onde se possa caminhar. O infinito estóico, heróico derrubou as vicissitudes do poder; amedrontou aqueles a quem se atribuí a força última e derradeira. Nos mortais, a quem sempre restou a esperança de serem salvos, reside agora a inevitável necessidade de auto-suficiência. Querem viver para sempre, querem a imortalidade, a força bruta e eterna. Conhecem o mito da pedra filosofal. Alguns têm o mapa que os conduz até lá, até à tão querida eternidade. Desconhecem o que os espera, desconhecem a malícia deste Deus ex-machina que descaracterizou o mundo: o profeta anunciou a vinda de um homem - quem sabe um herói - que nos resguardaria da desgraça. Pelo contrário, descaracterizou-se o homem e a comunidade, outrora fértil, vendeu as palavras a um diabrete mascarado de criança. Ficámos sem ter o que dizer em troca da eternidade. Foi esse o preço que restou para pagar.
Desde o dia do contrato, passaram 24 horas em que ninguém no mundo morreu. E no dia seguinte, serão 48 horas em que ninguém morrerá. E todos os dias que passarem serão mais 24 horas, até um dia serem anos, até outro dia ser a eternidade. O mundo estará cheio de gente enferma, de gente à beira da morte que nunca morrerá, de estropiados e de cegos que desejariam mais facilmente morrer do que viver para sempre. Nesse dia, o mundo será apenas um amontoado de outrora mortais combalidos pela desgraça. Isto tudo porque um dia, um dia há muitos anos atrás, os heróis trocaram as capas por umas asas; isto tudo porque um dia, um dia há muitos anos atrás, os homens quiseram brincar ao jogo da eternidade.

domingo, 22 de março de 2009

Tarifa: 1,40€

Era hoje.
Era hoje que devia despedir-me de ti...
Desculpa se sou tão inábil.
Hoje é apenas o dia em que te anuncio a despedida.
Deseja-me uma boa viagem se puderes.
Não quero voltar atrás.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Da aprendizagem

Um dia,
talvez seja mesmo,
mesmo necessário
que me ofereçam uns sapatos
para que eu possa finalmente
aprender a a andar.
Quando eu crescer
e tu cresceres,
haverá ainda rosas suficientes no mundo?
Lembro-me do dia em que aprendi a fazer arroz;
e só por isso era capaz de me casar contigo.
Puseram-me um carro na mão
e eu matei dois pássaros:
depois fui tirar a carta.
Ainda hoje não sei falar como as pessoas crescidas;
há sempre um assobio na minha voz
que lembra o tempo em que era pequena
e rosada.
Não sei dizer palavrões,
e não é por ser muito bem-educada.
Aprendi a andar de bicicleta
muito tarde
e nem por isso
deixei de pedalar à beira-mar.
O cheiro a praia
do teu pescoço ensinou-me
a esperar pelas ondas maiores
para mergulhar.

Parte I das pequenas histórias sobre a felicidade

Hoje perguntaram-me que coisas me deixavam feliz. À falta de resposta imediata, propus-me a pensar e a imaginar cenários de bem estar e serenidade. Lanço o desafio a todos os que por aqui vão passando... Quais são as coisas que vos fazem felizes?

***

Dia de piquenique. Três horas, a relva parecia reluzente e fresca; bastava passar o vento para que a cor ondulasse entre a discrição e a excentricidade. A toalha branca estava estendida, como se aquele fosse o seu lugar desde sempre e não outro para além daquele. O ruído abandonara há muito aquele local, fazendo questão de deixar suspenso apenas o som do Verão entre o assobio dos melros e o riso distante de três ou quatro crianças cujos pés estavam descalços. Dentro da cesta de verga, havia uma garrafa de vinho e algumas maçãs.

***

Quando o dia decide findar em tons de púrpura, o regresso a casa mostra-se inevitável, mesmo quando a vontade nos desafia a mais umas horas de conversa fiada. A travessia é geralmente solitária. Mas há dias, aqueles dias, em que o acaso transforma o regresso a casa no mais terno momento da jornada. Aqueles dias em que inesperadamente a viagem de comboio nos entrega um amigo como brinde.

***

O salão estava quase deserto. Três ou quatro luzes faziam sentir-se no meio do fumo. A música lembrava anos que não os de agora. Três mulheres sentadas, copos e cigarros na mão. A linguagem corporal correspondiam à deselegância de não saber o que fazer. Castiças! Bocas vermelhas e sem saber onde pôr as mãos. No fundo do salão uma cortina pesada de veludo vermelho escondia objectos velhos. De súbito, uma mulher e um homem acompanham, quais bailarinos de longa data, a fanfarra gravada e emitida por umas colunas de fraca qualidade. As três mulheres sentadas, ficam perdidas, em suma, deslumbradas pela visão do amor.

***

Os pais não estavam em casa e as desculpas para evitar aquele segundo em que o desejo atravessa a razão acabariam por se esgotar mais cedo ou mais tarde. Puxaram as cortinas até meio das janelas para que a sua viagem não fosse a perda de pudor dos vizinhos. Deixaram instalar a música do desconforto. Primeiro tiraram as camisolas e observaram-se como se aquela fosse a primeira vez. Em poucos minutos, não havia nada que lhes cobrisse os tenros corpos. A vergonha impediu-os de avançar até que as consequências fossem últimas. Sem pudor e sem falar, deram as mãos e adormeceram. O que havia para dizer, foi dito durante o sono.

***

O que havia de melhor nas suas idas ao teatro era esperar que todos saíssem da sala para que, por fim, ele pudesse ver toda a magia quebrar-se no escuro.


quarta-feira, 11 de março de 2009

Hino à desgraça: à boa memória de quem faz falta...


Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar

Ver-te sorrir eu nunca te vi
E a cantar, eu nunca te ouvi
Será de ti ou pensas que tens...que ser assim?...

Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar

Ver-te sorrir eu nunca te vi
E a cantar, eu nunca te ouvi
Será de ti ou pensas que tens... que ser assim?...

Olha que a vida não, não é nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver
Olha que a vida não, não é nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver

Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar

Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Muda de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar

António Variações

domingo, 8 de março de 2009

Bombons


Como dava beijos lentos, duravam-lhe mais os amores.
Aquilo que define as mulheres é achar que todos os homens são iguais, enquanto que aquilo que perde os homens é achar que todas as mulheres são diferentes.
O relógio não existe nas horas felizes.
A água não tem memória: por isso é tão limpa.
Velho actor: deixou uma dentadura que declamava Shakespeare.
As rosas suicidam-se.
Aquela mulher olhou-me como se eu fosse um táxi livre.

Se ides à felicidade, levai sombrinha.