segunda-feira, 23 de março de 2009

SUPER HOMEM D'ASAS D'ANJO


Imagina. Imagina o que é tropeçar num herói defraudado pelo medo. Num herói sem capa e sem poderes. Num herói que fantasia o suicídio como recurso último para a existência. Conheço muitos assim: trocaram a capa que os faz flutuar na estratosfera por umas asas de anjo plásticas compradas numa loja de Carnaval. Mais fácil assim: as consequências humanas são mais suportáveis que a possível ideia de salvar o mundo e os seus queridos entes perdidos. A responsabilidade atrofiou-lhes o desejo. Os heróis? Que é feito deles, das suas virtudes? Aos heróis atribuímos a desgraça, a sua impossibilidade de cumprir com o acordo que estabeleceram com os mortais. Aos heróis foi designado agora o título da idiotice. Eles próprios perderam o desejo de combater. Sentaram-se inertes nas poltronas em casa enquanto a televisão lhes ramificava o cérebro. Deixaram de ouvir os chamamentos últimos de quem vê a morte chegar em câmara-lenta. Eles próprios tentaram ser mortais, para poder morrer. O herói tirou a capa, vestiu os ombros de quem não tem sexo e ainda assim procriou, procriou, procriou sem pudor até criar milhares de heróis desapossados.
Entretanto, caminhos, caminhos sem cessar. Milhares de rotas, milhares e milhares e milhares de rotas, todas as possibilidades. Como escolher? Sem poder não há escolha. Sem escolha não há fim para onde se possa caminhar. O infinito estóico, heróico derrubou as vicissitudes do poder; amedrontou aqueles a quem se atribuí a força última e derradeira. Nos mortais, a quem sempre restou a esperança de serem salvos, reside agora a inevitável necessidade de auto-suficiência. Querem viver para sempre, querem a imortalidade, a força bruta e eterna. Conhecem o mito da pedra filosofal. Alguns têm o mapa que os conduz até lá, até à tão querida eternidade. Desconhecem o que os espera, desconhecem a malícia deste Deus ex-machina que descaracterizou o mundo: o profeta anunciou a vinda de um homem - quem sabe um herói - que nos resguardaria da desgraça. Pelo contrário, descaracterizou-se o homem e a comunidade, outrora fértil, vendeu as palavras a um diabrete mascarado de criança. Ficámos sem ter o que dizer em troca da eternidade. Foi esse o preço que restou para pagar.
Desde o dia do contrato, passaram 24 horas em que ninguém no mundo morreu. E no dia seguinte, serão 48 horas em que ninguém morrerá. E todos os dias que passarem serão mais 24 horas, até um dia serem anos, até outro dia ser a eternidade. O mundo estará cheio de gente enferma, de gente à beira da morte que nunca morrerá, de estropiados e de cegos que desejariam mais facilmente morrer do que viver para sempre. Nesse dia, o mundo será apenas um amontoado de outrora mortais combalidos pela desgraça. Isto tudo porque um dia, um dia há muitos anos atrás, os heróis trocaram as capas por umas asas; isto tudo porque um dia, um dia há muitos anos atrás, os homens quiseram brincar ao jogo da eternidade.

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