quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A invenção das portas e outros problemas

A minha casa, apesar de tudo, não tem portas. É uma casa sem portas e com duas varandas corridas que dão para o Tejo, muito embora o Tejo esteja a três quilómetros de distância. A minha casa é um sítio inventado onde há um parede totalmente preenchida por livros que eu ainda não li e os outros, já lidos, estão guardados na pequena arrecadação nada sombria, ao contrário das arrecadações vulgares. A minha casa costumava estar cheia de pessoas, que bastava serem pessoas para poderem estar na minha casa. Ás vezes não eram amigos, não eram amantes, nem o pai e a mãe, a irmã e a restante família alargada. Eram só pessoas que entravam na minha casa ampla que não tinha uma única cadeira e se sentavam para lá falando das coisas que geralmente as pessoas falam. Era só uma casa a minha casa; era só uma casa. E lá dentro havia lençóis engomados e roupa lavada e fresca. Havia às vezes muita luz quando se abriam as janelas e essa luz era o encontro das palavras fecundas. A minha casa que era só uma casa era estruturada e mesmo quando havia ventania lá fora, os pilares não cediam nem sequer tínhamos medo. Muitas vezes havia vinho no chão e alguns cigarros apagados em cinzeiros improvisados. Isto porque a minha casa tinha sempre muitas pessoas que eram só pessoas dispostas a trocar palavras fecundas enquanto se sentavam no chão da sala. Um dia, quando puseram portas na minha casa, as pessoas morreram todas. Não havia pessoas, nem amigos, nem amantes, nem pai e mãe, irmã e família alargada. Quando a minha casa nasceu de novo com portas restou uma única criatura no mundo, que ainda hoje não sei bem se era pessoa ou se era só criatura. Talvez tenha sido essa estranheza o motivo pelo qual esse ele permaneceu vivo para além de todos os outros seres e de mim mesma. Talvez tenha sido essa estranheza que o conduzira à única casa com portas cujas varandas abraçavam o Tejo longínquo. Essa criatura era, ainda que sendo ou não pessoa, um homem cujo nome ainda hoje desconheço. O homem que me invadiu a casa e os lençóis engomados. Com ele, as conversas não eram fecundas. Talvez fosse o amor. O amor fecundo que gera, na maioria das vezes, outras criaturas com características quase semelhantes àquelas que têm os que as geram. Mas mais uma vez, nem essa era a fertilidade que fazia o homem entrar na minha casa. Os cabelos dele cheiravam a areia e sol. É muito provavelmente a recordação mais nítida que retenho na minha cabeça. Areia e sol. Talvez esse não fosse o melhor cheiro do mundo, mas era o cheiro daquela criatura única que permanecia viva no planeta para além de mim. Não estou certa do motivo que nos uniu, muito menos certa das razões que levaram à nossa sobrevivência após a calamidade das portas. A verdade é que muitos pássaros ficaram vivos, nos museus a arte não derreteu e todas as grandes superfícies tinham prateleiras cheias. Agora quanto ao facto de estarmos vivos e ainda por cima vivos na minha casa que outrora fora um porto de gente, não tenho qualquer justificação. Parece-me que aquela coisa a que chamamos fé tenha sido a única razão, racional entenda-se, para a sucessão de acontecimentos tão bizarros. Um dia quando acordei na minha casa com portas a criatura tinhas as mãos ensanguentadas e desenhava na parede memórias daquilo que devia ter sido a sua infância. A ironia daquela visão entristeceu-me. Um homem partia das suas vísceras para reescrever um passado inóspito. E ainda assim, invadia todos os compartimentos com o mesmo cheiro de areia e de sol. Mesmo agora que o homem já não está em minha casa, é esse o cheiro que está impregnado nas paredes. O homem já não está na minha casa porque morreu. Matei-o, sim a verdade é essa. Matei-o com as duas mãos e um bocadinho de fita cola que guardava dentro do armário da cozinha para emergências. Mas isso foi depois de muitos anos, não sei ao certo quantos, porque um dia eu e o homem decidimos não sair da casa que era minha e, estranhamente, agora era também dele. Para ali ficaríamos prostrados: ele diante das paredes abrindo todos os dias mais uma veia par poder terminar o seu mural; eu sentada diante da visão irónica que era aquele desmembramento. Acabámos por criar alguma intimidade neste jogo. Nem sempre dormíamos. Raras eram as vezes em que comíamos. Até porque, como tínhamos decidido por maioria, não voltar a sair daquela mesma casa, tínhamos de ser poupados. Não conversávamos. Talvez não houvesse assunto, continuo na dúvida... Um dia quando acordei, o sangue dele tinha acabado e por esse motivo, calculo, tinha parado de desenhar a parede. A obra de arte estava em fim terminada. Então, quando me viu sem nada para observar ao fim de tantos anos naquela mesma ciranda, ouvi-lhe a voz pela primeira vez: "Era bom se nos pudesses deitar juntos". Foi então que o matei. Matei-o. Porque antes de todas as outras pessoas que eram só pessoas terem morrido todas, já eu me tinha deitado com muitos homens e sabia bem como era mentira que assim se construía uma intimidade. Sem nunca conhecer a criatura com quem vivi mais de metade da minha vida, consegui amá-la mais do que a qualquer homem que se tenha deitado comigo. Então, como não queria romper o compromisso que tinha estabelecido com aquele homem e com a sua fé, matei-o com as mãos e os restos de fita-cola que deixava guardada na gaveta da cozinha para casos de emergência. Matei-o e não houve grande problema, porque na verdade não havia pessoas vivas que me pudessem punir. A solidão era agora a única realidade plausível. Estava sozinha no mundo e na casa, mas pelo menos tinha vista para o Tejo. Passei o resto da vida que me sobrou a observar o mural da infância do homem e descobri que a intimidade é a circunstância mais dolorosa dos seres humanos. Para disfarçar a solidão que sempre fora uma temática assustadora na minha perspectiva de pessoa, passei também eu a desenhar na parede. Com o meu sangue desenhei todas as pessoas que estiveram na minha casa e quando finalmente decidi desenhar o homem o meu sangue tinha secado. Seca. Estava seca para desenhar o único homem com quem tinha partilhado a intimidade dos anos. Então, com o último pedaço de fita-cola que sobrara do meu primeiro crime, atei as duas mãos, sentei-me na varanda corrida e fiquei à espera da morte.

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