sábado, 22 de novembro de 2008

Os inevitáveis encontros de Maria e José: o corpo desumano do amor

-J: M tens o corpo dilacerado pela brutalidade do trabalho: negrume fundo nos apoios, traços de sangue nos pés e umas unhas cravadas em rasgão bruto em cada uma das omoplatas. O teu corpo está consumido pelas dores de quem não pode parar, pelas dores de quem vê no trabalho árduo a única emergente saída para a solidão. M, porque cobres tu o corpo todo com trapos pretos? Essas são as tuas angustias transformadas em carne cortada. É a minha tese. A minha tese sobre a tua tristeza. Quando te encontrei, os teus olhos denunciaram a morte acumulada dentro das tuas mãos e dentro do resto das coisas que permanecem estanques e seguras no teu corpo. Não esperavas ver-me? A verdade M, é que não te amo. A verdade é essa. Mas não sei que coisa amarga é essa que sempre trazes contigo que me vicia. Deixa-me tirar-te a roupa, descobrir as tuas dores.

Silêncio

M...? M...? Deus roubou-te as asas e as tuas costas sangram como rios. Deus roubou-te as asas e só por isso posso ficar a olhar-te durante horas, fazendo dançar os meus dedos sobre os rios trilhados pelo vermelho que te marca a pele virgem. As minhas mãos côncavas vão aninhar-te as feridas. Foi um homem, fui eu quem te traçou a pele? Fui eu que violentamente conduzi as minhas mãos contra o teu corpo, esperando quem sabe que alguma coisa ficasse da dor? Podia matar-te agora que nenhum de nós saberia porquê nem como se chega a um acto tão bruto. Podia matar-te, esmagar-te contra uma parede e ninguem saberia que ousámos cometer o crime do amor. Penso tantas vezes na morte, pequeno anjo. Imagino um corpo, sufocado debaixo de quilos infinitos de terra. Não existe ar, nem nada que possa alimentar a corrente das veias. Imagino o teu corpo suterrado e as tuas asas minusculas partidas junto das ossadas dos antepassados queridos. Não me interpretes mal, M. Esta é a única forma de amor que me mostraram: é esta a única visão sanguinária que tenho de um coração inflamado. Mas onde fica o meu corpo se morreres? Qual é o lugar, M? Perpetuaria, se pudesse, aquele segundo em que adormecemos no sofá. Cheiravas a banho acabado de tomar e os teus cabelos pingavam no meu peito. A luz que atravessava as janelas era quase efémera, quase nada. Ficamos embalados pelo tinir do vento e das tábuas centenárias e eu desejei mais uma vez matar-te... Agora morrer contigo. Matar-te e morrer no instante da acção, sem dissolução, sem mistério. Só para poder perpetuar aquele instante em que adormecemos no sofá. Porque essa paz, essa fé no amor, não a consigo encontrar em mais lugar nenhum.

És a minha casa M.

2 comentários:

Gil disse...

É o que Saramago chama à Pilar. A sua casa.

Ágnes disse...

Entreguei o meu amor a um estranho. E mais não digo.