quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A origem da fé

A criança já tem vinte anos. Vinte anos em que recusou Deus, Evas, maçãs e Judas. Vinte anos tentando repudiar qualquer ideia de morte ou de continuidade para além do corpo. Quando era pequena e todos os meninos da escola foram baptizados, ela ficou em casa sem perceber porquê. Também não perguntou. Em casa, não havia dicionário de teologia, mas a criança viu muitas vezes em cima da mesa de cabeceira do pai O Manifesto Comunista do Karl Marx. Poucas coisas fizeram sentido na altura. Quando a criança amadureceu, como a maçã, descobriu que Deus, Cristianismo, Maria Madelana, Maomé, Natal, Páscoa, morte e ressurreição, vacas sagradas, reencaranação e budismo faziam parte de todo um hemisfério por desbravar. E mesmo quando a criança leu muito sobre todas as problemáticas, mesmo depois de ter ido a Fátima e de ter acendido uma vela pelo avô que nunca conhecera, mesmo depois de ter aprendido algumas rezas que decorava como lengas-lengas e mesmo depois de ter feito de ovelha no presépio de Natal da escola, a criança continuou sem perceber que coisa era aquela tão grande que movia tanta gente, e estranhamente a si própria. Entrou em muitas Igrejas, sentiu-se muitas vezes devorada pelo espaço, comovida pela luz que entrava pelas frestas centenárias das janelas. Um dia quando deixou de ser criança, fazia frio e era Inverno em Lisboa. Levava as mãos enlaçadas num homem que amou muito. Entraram na Igreja que em tempos fora devorada pelo incêndio e que assim permanecera, consumida pelo calor do fogo, sem mãos que a recuperassem. A criança que já não era uma criança, voltou a sentir-se tão criança como quando estava no útero da mãe que a gerou. O espaço que a derrubou e a tornou minúscula, trouxe-lhe à memória os traços do amigo que morrera quando tinha dezasseis anos, do avô, do outro avô. O coração rompia no peito como se a qualquer instante pudesse parar. A luz cinzenta colava-se aos lábios e num instante, nem sequer isso, milhares de mulheres cantavam nas paredes fazendo entoar ecos distantes. Sentiu-se esmagada. Deus aconteceu. E então, a criança descobriu que esse esmagamento que lhe apertava o peito, era somente a percepção de que a maçã gerou o amor entre os homens e de que os homens, na sua própria condição, são capazes de acreditar nos gestos, na linguagem, nas palavras. Aos vinte anos, a criança descobriu a fé: em Deus? Nos Homens? A sua fé de criança, a sua fé prematura diz-lhe que Deus foi uma invenção astuta dos seres humanos para poderem justificar a existência do amor.

1 comentário:

Gil disse...

Em frente a essa igreja aconteceu um dos mais feios massacres de outrora, onde um rumor matou gente que não se sabe bem porque seria tão odiada.
Hoje é o retrato poderoso do peso de uma paixão.
..
O amor tem destas coisas.