domingo, 4 de janeiro de 2009

Messiah, de Frederic Handel ou a história do menino que sabia voar

A criança nasceu com os dedos estranhamente grandes para a sua tenra idade. Cedo se percebeu que eram valiosíssimos, que seriam com certeza uns dedos férteis; uns dedos que trariam ao mundo a boa nova do desejo e do combate à inércia. Para além das mãos, cujos dedos eram particularmente especiais, a criança não mostrava sinais de demais interesse: pequena e nada redonda, como seria de esperar deste tipo de recém-nascidos, a criança era vulgar. Sem qualquer espécie de mau sentido: era simplesmente uma criança vulgar cujas mãos anunciavam uma incursão fantástica pelo desconhecido. Os anos passaram pela criança e, todos os dias, os seus finos dedos ganhavam extraordinárias formas de galhos compridos onde pousavam melros e alguns pardais, que com os seus pequenos bicos, deixavam cicatrizes de assobio, pequenas notas de música que faziam fervilhar as tenras veias, enchendo-as de fogo e canções de embalar. Esses anos, não foram porém de extraordinária mudança para a criança cujos dedos eram especiais: o menino manteve-se, como outrora, numa criança pequena e nada redonda. Contudo, sempre que olhava para as mãos, havia um deslumbramento que atravessava a sua normalidade: ele via, de verdade, centenas de pequenos pássaros pousando nos nós das suas mãos jovens e memorizava cada cicatriz, compondo pequenas àrias que tocava com os seus dedos num piano imaginário desenhado a lápis de cor na secretária. Quando voltava da escola, mochila às costas e lancheira na mão, o menino das mãos de ouro ficava largas horas sentado no seu piano de brincar, reproduzindo, dentro da sua pequena fantasia, todas as notas que a passarada deixara em cicatriz nos seus finos dedos. Mais anos passaram, maior se tornou o menino que não tendo um piano de verdade tocava no seu já velho piano de lápis de cor. Nunca ouvira uma nota verdadeira dos pianos que usam vestido de noite comprido e preto. Mas sabia exactamente ao que soavam essas notas e não tinha a menor dúvida das infinitas possibilidades que os seus dedos experimentavam mesmo num pedaço de madeira. O menino, viria a ser um extraordinario pianista. E quando não se esperava que fosse outra coisa senão um brilhante tocador de piano, o menino transformou-se num extraordinário homem: as cicatrizes deixadas pelos pássaros gravaram não só a memória das melodias, mas também as memórias de quem sabe voar. O menino soube voar. O homem soube voar, conheceu o sabor que tem o frio quando greta os lábios, ouviu poemas de amor sobre a sua nuca desnuda, tragou os lábios de uma mulher que acabára de beber vinho tinto, aprendeu os jogos dos meninos que vivem na rua. A criança vulgar era afinal um homem pássaro; um menino que tocava piano a lápis de cor.

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