domingo, 21 de setembro de 2008

Dois metros quadrados de fé: os inevitáveis encontros de Maria e José

J caminha em direcção à cabine telefónica. Caminha devagar, invadido, pela primeira vez na sua vida, pela sensação de jogo perdido ou a perder. Nunca na vida teve nada a perder, absolutamente nada. Era a primeira vez que havia alguma coisa verdadeiramente importante em jogo: uma espécie de amor impossível ou inevitável, uma fé roubada por uma estranha que agora amava, um Deus perdido. Eram muitas coisas que J podia perder e era muito pouca a vontade que tinha em viver sem elas. J caminha devagar, J está abandonado.
M está na outra ponta da cidade, desconhece a vontade de J em revê-la; conhece porém a necessidade quase mórbida de o reencontrar. A cabine telefónica onde esperara já uma vez é o único espaço possível para o encontro, é também o único espaço que apesar de tudo lhes era íntimo: mais do que a rua estreita onde se cruzaram brevemente pela primeira vez. Aquele espaço de comunicações em bruto, era o espaço onde a fé de ambos tinha sido depositada, era o único espaço possível para o amor de M e J.
M caminha em direcção à cabine telefónica. Caminha devagar, invadida, pela primeira vez na sua vida, pela sensação de não ter nada a perder. Tivera muitas coisas felizes na sua vida, tranquilas porém: nunca M tinha entrado em ebulição. Era por isso, também, a primeira vez que havia alguma coisa verdadeiramente importante em jogo: um homem perturbador e sujo, a posse de um Deus que não lhe pertence, a fé nas pessoas, nos seus compromissos com a vida e com o mundo. M caminha devagar, M tem esperança.
Mais uma vez, o cosmos trabalha em prol deste encontro inevitável. Desconhecendo caminhos alheios, M e J vão encontrar-se na cabine telefónica; vão encontrar-se pela segunda vez movidos pela fé que têm; pela fé que têm um no outro. Na mochila de M está a sua máquina fotográfica; na de J o avental ensanguentado do restaurante. Chove, dia de quase-Inverno.
J chega à cabine telefónica. Entra, protegendo-se da chuva. Está determinado a ficar à espera de M. M não tarda a chegar.

-J: (em sussurro) Aparece M, aparece. Estou aqui como te prometi. Foram umas horas, uns anos?, de atraso. Vem M, corre para os meus braços. Não há tempo, pois não M? Partimos todos os relógios das ruas da cidade, des-sincronizamos as horas, os sinos nas igrejas já não tocam. Aparece M, aparece que te vou contar os meus segredos, vou levar-te a um espaço que é só meu e que depois será nosso. Vou levar-te ao espaço que é a minha casa e ao qual não posso regressar enquanto não me devolveres a memória. Esqueci o caminho M. Aparece para que eu possa regressar.

M entra na cabine telefónica. M e J estão apertados, reduzidos a menos de dois metros quadrados. Os vidros ficam embaciados com a respiração de ambos. Não há muitas palavras que possam ser ditas; apenas surpresa pelo re-encontro não combinado. Suspensão. Ataque de M.

-M: Estás aqui.

-J: Consegui cá chegar. Quantos anos passaram M?

-M: Dez, talvez vinte. Umas horas, poucas. Não sei. Não há tempo, será assim?

-J: Não sei como é. Levaste tudo o que tinha na mala, só resta o avental cheio de sangue. Se o tivesses visto, tê-lo-ias levado, estou certo que sim. Levaste tudo M, levaste tudo e eu não corri para te apanhar. Agora sou eu que te levo M, vou levar-te até onde te quero levar. Vens comigo, M? Vem comigo, que são só segredos, só histórias. Nada mais.

-M: Vou contigo J. Não me peças que vá. Iria mesmo que não mo pedisses. Fiquei horas à tua espera nestes dois metros quadrados. Horas à espera de te ver chegar. Porque não vieste tu, J? Tinham sido tantas as tuas promessas naquela rua amontoada sem sentidos. Estava certa do re-encontro. Mais certa agora que aqui estás. És um ser estranho, não conheço as fissuras do teu corpo, as cicatrizes marcadas durante a infância. E ainda assim vou contigo e sinto o teu hálito perto dos meus lábios. Tens os lábios grossos J, os caracóis desalinhados sobre a testa. Leva-me J. Leva-me onde me queres levar.

J abre a porta da cabine telefónica. Sai em silêncio. M segue-o.

-J: Vou levar-te ao meu Deus...

Silêncio.

2 comentários:

Gil disse...

Vim aqui parar ao acaso ao navegar sozinho por águas passadas. E que bom que encontrei esta pequena doca escura e sossegante. Vou ancorar durante um bocadinho mais, se não te importares. Faz-me sentir mais próximo.
Beijinho

Ágnes disse...

Ancora-te, sim amigo. Não sei se este será um porto seguro, mas é um porto perto de casa. Ás vezes lembro-me de ti e tenho saudades tuas. As viagens... ai, as viagens!
Irei visitar-te também desse outro lado a oeste deste mundo.

Até já