sábado, 13 de setembro de 2008

as impossibilidades: os inevitáveis encontros de Maria e José

-M: Onde estás tu J? Dizes-me onde andas tu? Fiquei à espera na cabine telefónica, o centro transpirava gente cansada e ainda assim esperei na cabine telefónica. J que é feito de ti? Que é feito do teu avental sujo das entranhas do mundo todo, que é feito dos golpes das tuas mãos provocados pelas horas intermináveis que passavas na cozinha a cortar pedaços de carne vermelha, que é feito do teu estado de transe e dos olhos revirados enquanto passavas, perdido no meio dos pratos imundos empilhados no balcão? Esqueceste-te, foi, esqueceste-te que iria amanhecer em poucos minutos e que eu esperava na cabina telefónica? Cretino. É isso. Fizeste parar a Primavera, disseste-me que ela iria desabrochar em cima dos meus ombros e fizeste-a parar como uma faca que rasga um ventre maduro. J, tens o avental coberto de sangue. São as tuas mãos secas e as minhas veias inchadas que te mancham o avental. J, estás a suar, tens o rosto coberto do gotas espessas, tens a cara velha e rugosa cheia de gotas espessas. São as tuas promessas vãs e a minha feliz ingenuidade que te fazem suar? Cretino. Cretino! Corre, vamos, corre para o centro da cidade, para os tubos que ardem debaixo da terra. Corre para dentro do parque de estacionamento e envenena-te um bocadinho mais, envenena-te até ser último o último rasgo de oxigénio. Não esperes por mim J, eu não vou correr para te salvar. Vou ficar sentada, na cabine telefónica, embriagada com a imagem do teu avental imundo à espera, sempre à espera de te ver chegar. Vais estar sozinho quando te faltar o ar e eu não vou correr. Estou mal calçada para correr. Quis pintar a boca de vermelho para te ver chegar e por isso não posso correr: não há correspondência (im)possível. Destruímos o rendez-vous poético que o universo nos ofereceu: tu por seres cretino, eu por gostar da tua cretinice. Agora a única imagem que me assombra é a dos teus braços mortos dentro de um lava-louças colossal tentando dar vazão às centenas de pratos consporcados pela boca faminta dos homens da cidade. A cidade parece morta quando não passas, a cidade cheira a canos. J, não tenhas pena de mim, não te atormentes. A minha juventude não me cega nem me rasga o peito. Sei bem lidar com a espera. Estive a vida inteira à tua espera... Não quero compaixão. Quero antes afogar-me no Tejo bafiento que invade a minha janela do quarto e imaginar-te sufocado num parque de estacionamento enterrado debaixo da cidade inteira. Trouxeste o teu avental, J? Querias passá-lo por àgua e estendê-lo ao sol? Esperas ver findas essas manchas? Foi vinho tinto, meu amor, foi vinho tinto que derramaste nesse avental, foi o vinho tinto que os meus lábios tocaram. Não te vês livre dessas manchas tão cedo. Eu vou desaparecer se não chegares à cabine telefónica mas no teu avental ficará impregnado o gosto da minha saliva. J, que é feito do nosso rendez-vous? Amor nenhum, J, amor nenhum.

Sem comentários: