sábado, 3 de janeiro de 2009

Os cabelos presos nas tiras de tecido velho da feira da ladra

Lembro-mo dos dias em que tinha o cabelo comprido e enrolado em tiras de tecido compradas na Feira da Ladra aos sábados de manhã. A luz era sempre diferente nesses dias: havia um reflexo doloroso que nunca fugia das paredes brancas das igrejas, mas que ao mesmo tempo, iluminava a calçada gasta de Lisboa. No tempo em que o meu cabelo era comprido, ficava muitas horas a pensar no amor e nos amores e todos os dias descobria em mim um desejo íntimo e inocente de encontrar umas mãos que cobrissem as minhas. O meu cabelo era comprido, guardava-me as costas nuas e as omoplatas meio tortas pelo peso das mochilas onde carregava as minhas leituras. Cresciam pequenas casas, estradas, viadutos, jardins e gaiolas de pássaros no meu cabelo comprido. Uma pequena cidade desenhava-se entre os hemisférios do meu cérebro, fazendo com que criaturas do tamanho de átomos povoassem as pequenas casas meticulosamente decoradas e arranjadas como se a cidade fosse, de facto, verdadeira. Entre os milhares de fios compridos e castanhos nasciam crianças, houve muitas mulheres grávidas e partos nos hospitais, houve muitos homens dispostos a abdicar dos fatos e das gravatas para poderem amamentar os recém-nascidos. Havia velhos coxos, cegos, paralíticos que às vezes tinham AVC's, tromboses e ataques cardíacos, recolhidos nos seus lares onde ficavam pacientemente à espera da morte. Havia adolescentes que descobriam os primeiros trilhos do amor e do corpo, impulsionados pelas hormonas poderosas que os faziam desabotoar as calças em casas de banho públicas. Também havias homens e mulheres cheios de fé no amor, que construíam famílias estáveis, filhos saudáveis e casas com jardins relvados.
Um dia a luz de Lisboa deixou de ser dolorosa como naqueles sábados de manhã. Era uma luz branca que não feria, pelo contrário, fazia com que quiséssemos recomeçar, sem angústia e sem pressa. Cortei o cabelo. Deixou de ser longo; deixou de esconder as cicatrizes das costas. A cidade porém não desapareceu; tornou-se só mais pequena e menos confusa. Mas todos os dias o meu cabelo cresce mais um bocadinho e por isso eu sei que todos os dias nascem crianças perto da minha nuca e atrás das minhas orelhas há jovens que me sussurram palavras de amor e na minha testa acabam por morrer sempre três ou quatro velhos que sucumbem ao desalinho dos dias. Enquanto houver força nas minhas raízes para manter o meu cabelo, sei que a cidade permanecerá intacta bem como a esperança nos homens: a minha fé na humanidade.

1 comentário:

Anónimo disse...

ah, e eu? e quando o meu cabelo era comprido? coisas maravilhosas aconteciam...
a ver se cresce rápido.