domingo, 5 de outubro de 2008

o táxi: os inevitáveis encontros de Maria e José

-J: Não tenho carro, nunca aprendi sequer a conduzi-los. A constante embriaguez provocada pelo álcool e pelo amor tem sido um impedimento para a obtenção da minha independência locomotiva. Entendes, M? Ando a pé. Geralmente ando a pé. O rumo é quase sempre incerto. A luz branca do néon atrai-me; muitas vezes vou de encontro ao encontro dessa luz. Há homens surdos nesses sítios, homens surdos com headphones. Nunca consegui perceber o que ouvem eles. Tu sabes, M? Sabes que música é a música destes homens? Estão sempre sozinhos debaixo de um enorme foco branco e estou sempre a encontrá-los porque ando muito a pé. Não tenho carro. Não quero... Tens carro, M? Conduzes? Não gosto de carros. Não entendo como podem as pessoas fazer amor lá dentro; não entendo como podem duas pessoas que se amam amar-se dentro de um carro. Tu deves entender, não é M? Tu já fizeste muito amor, filhos lindos talvez. Já amaste muitos homens dentro de carros, mas nunca chegaste a entrar dentro das casas deles porque dentro das casas deles havia uma mulher e três ou quatro crianças famintas e fotografias de família tiradas em tardes de domingo. Fazias amor com eles nos seus carros e eles regressavam aos seus pedaços de normalidade. Não era assim, pequena virgem?
O meu conceito de amor foi destruído pela tua chegada. Tu não existes, és só a pequena invenção dos meus olhos de dentro. És só um pequeno delírio poético e eu não tenho mãos para amparar as tuas quedas porque tu não tens corpo. Criatura demasiado serena para morrer nos meus braços. Dentro de dois dias, não mais, vais encontrar-me sem roupa, pedaços amontoados numa rua suja da cidade. Vou dizer-te que não me sirvo e que não sirvo para ninguém. Vou negar-te as minhas sobras; que essas restem para as putas. Um dia até, querida M, querida virgem?, vou ser sugado pelo vento que jorra das bocas do metro e não voltarei a ser encontrado. Vou morrer dentro da boca do metro. Dois, três dias M, não mais. Agora, neste instante congelado em que te abraças a mim dentro de uma cabine telefónica vou pedir-te uma vez mais que venhas comigo. Vens, M? Vou pedir-te que me resgates da morte certa que não quero morrer já. Não sei viver porém. Mas tu, M, tu sabes como são essas coisas da vida. Tenho a certeza que já viste muitos países e que já alguém quis casar contigo. Ficavas linda com o vestido branco decotado, cabelo apanhado com pérolas.
Chegaste até mim como vento de norte; estou certo que vieste resgatar-me da morte. Vou afundar as minhas vísceras, o meu fígado em toneladas de vinho fermentado para ficar à espera do fim com menos dores. Não é no coração que me dói, é cá dentro naquilo que deve ser o meu útero, a minha fertilidade. M, pequena virgem, tu és o amor. Que o amor me salve desta podridão para a qual caminho todas as noites. Vem comigo M. Eu não sou como esses homens que te desventraram as pernas. A minha casa está só: não há nela histórias de outras mulheres, embriões nem cartas de amor desesperadas. Nunca nenhuma mulher entrou no meu quarto. Tu M, nunca entraste no quarto de nenhum homem. TÁXI... TÁXI! Rua 3, nº7, terceira varanda à direita. Vem M, vem povoar o meu asilo de memórias.

1 comentário:

Gil disse...

Nestas coisas dos delírios poéticos as quilometragens são sempre mal calculadas. Uma viagem que dura para sempre termina invariavelmente ao virar da esquina.
No final a tarifa que é cobrada vem sempre inflacionada, mas a adrenalina de viajar a todo o gás, colina acima, colina abaixo, alivia por breves instantes a taxa de montanha russa.