segunda-feira, 15 de setembro de 2008

os desassossegos de maria: os inevitáveis encontros de Maria e José

M deixara a cabine telefónica há horas. Estava cansada de esperar pelo homem dos golpes nas mãos. Teria lá ficado a vida inteira se pudesse, mas cedo aprendera que uma boa dose de egoísmo era a única forma de se manter sã. Estava estranhamente disponível. O aperto da ausência transtonava-a, mas não a matava como poderia pensar. J não aparecera como prometido, J aniquilara a possibilidade do rendez-vous. M estava à espera que esse fosse o procedimento único e inevitável das coisas. Cedo demais, todas as coisas se mostraram inevitáveis para M.

M conhecera em tempos um outro homem, o único homem aliás que M conhecera antes de J. Era um homem como outro qualquer, nada nele era tão verdadeiramente fascinante como em J. Este homem era só um homem. Vestia calças de ganga como qualquer miúdo imberbe. Nada nele havia de inquietante; não cheirava a óleo como J, nem usava uma mochila às costas cheia de roupa ensanguentada. M seria incapaz de o fotografar se quisesse, não encontrava nele entranhas suficientes, loucura suficiente para o fixar. Contudo, este homem que era só um homem teria sido incapaz de deixar M numa cabine telefónica à espera; na verdade nem M esperaria por ele. M teve uma vontade súbita e inesperada de encontra-lo depois de ter esperado e esperado em vão por J. Estava disponível, para quê nem ela própria terá percebido.

O desencontro de M e J transformara-se no encontro de M e do homem. O homem sem nome, sem cheiro, o homem das zero inquietações.

-Homem: Onde está a guerra que foi o nosso amor?

-M: Não me lembro das nossas armas; não me lembro de ter travado essa guerra.

-Homem: Todas as noites chegava em cima de um cravo para te apanhar à beira rio. Tinhas os cabelos compridos e menos vinte anos. Comias peixe ao pequeno-almoço e subias para o tanque pronta para me atacar a qualquer instante. Havia cólera ardente nos teus olhos. O teu desamor queria matar-me e isso fazia-me querer estar perto do epicentro da batalha, das tuas coxas, do vinho derramado no teu umbigo.

-M: Não me lembro desse vinho; mas lembro-me dos vinte anos que passaram. Terão sido vinte os anos que passaram? Não foram menos dez que esses todos, menos vinte, não foi ontem mesmo que te conheci?

-Homem: Antes o teu cabelo era comprido, era vinte anos mais comprido do que é hoje...

-M: Não me confundas. Foi ontem, foi ontem que te conheci. Eras precisamente o mesmo homem que és hoje. Não cheiravas a coisa nenhuma. Parecias morto. Hoje pareces tão morto como ontem. Não podes estar morto há vinte anos.

-Homem: Há vinte anos fazias amor comigo. Há vinte anos...

-M: Não digas mais nada, peço-te. Faria amor contigo se tivesses cheiro. Talvez assim pudesse conhecer o teu nome. Prefiro ser um homem sujo a uma mulher que se deita numa cama lavada. Talvez me entendesses se soubesses o que é ter as unhas cravadas na terra, o ventre sujo pelo amor de um homem. Talvez compreendesses o que são vinte anos se os tivesses vivido dentro de uma casa devoluta cheia de infecções.

(Pausa)

-Homem: É bom falar contigo.

-M: É bom. Se soubesse o teu nome, fazia amor contigo.

M sentia-se agora um pouco como J: desassossegada, só.

-M: Devolve-me o meu Deus, J. Devolve aquilo que me tiraste...

3 comentários:

Jacinto. disse...

Será que eles se odeiam?
Odiar é desejar o desaparecimento ou a destruição do outro. Porquê?
Porque nos oprime, porque nos irrita, porque não nos deixa ser
felizes, ou porque prejudica os nossos planos para controlar o mundo.
O ódio é uma parvoíce, mas como viver sem ele? Como é possível? E como é possível viver com ódio? O ódio mata aos bocadinhos, lixa uma
milésima de milímetro da nossa pele todos os dias, anos a fio, até não sobrar nada. Ninguém quer odiar, ninguém gosta de odiar, ninguém gosta de ser odiado. Mas será possível fazer as coisas de outra maneira, quando nos sentimos ultrajados ou indignados, ou quando somos vítimas de coisas terríveis? É um sentimento natural. Toda a gente odeia. Nem
que odeiem comer rabanetes, espargos, courgettes, beringelas ou
levantar-se cedo na segunda-feira (a propósito: o ódio às courgettes
devia ser universal - aquilo é legume que não sabe a nada).
O ódio foca a atenção e dirige todos os pensamentos e acções para o Outro, de forma obsessiva. Passamos a viver em função do Outro, o ódio dá força, vigor, energia para aniquilar o opressor, mas tal como uma bomba atómica ou algo parecido, acaba por destruir o portador...
Odiar cansa.
Cansa muito, desgasta, torna-nos loucos e imbecis. É um peso enorme e corrosivo. É como carregar um canhão de bronze de meia tonelada às costas, sempre na esperança de que um dia tenhamos oportunidade de
apanhar o Odiado à frente do cano. E no resto do tempo, não serve para
mais nada.
Pesa, pesa, pesa, pesa, dá acidez de estômago, exaspera todos os dias.
E o odiado não desaparece, não se intimida, não reage, não se esfuma
em vapor.
E como o gajo não desaparece, nunca mais podemos ser felizes e como nunca mais podemos ser felizes...

...a partir de certa altura, aparece o Od2 - o ódio ao quadrado.
E começamos a odiar-nos a nós próprios por nos termos permitido odiar tanto. É como comer o nosso próprio vómito fazendo muitas caretas.
Odeia-se cada fibra muscular, cada celulazinha, cada pedacinho de osso, cada gotinha de linfa pulsa
com a esperança de se vingar - de tal modo que o ódio se dirige para dentro e tenta extirpar os
vestígios do Odiado, que agora somos nós: odeia-se o código genético, que apetece arrancar à dentada, ou com um esfregão de palha de aço, ou triturando o corpo numa picadora para depois o passar numa peneira e filtrar a parte que não interessa.

Ou seja, é a auto-aniquilação total, a negação da existência. O que é muito cómico, já que o ódio, por natureza, é uma expressão excessiva do ego e o desejo da aniquilação dos outros.

Odeio escrever estas coisas.

Bel disse...

Ai valha-te Deus Obsessivo, arranja um blog para ti( riso maléfico), e tu Ófélia não lhe dês trela pq ideias naquela cabeça não faltam.Mto MEDO.

Beijos mil para ti minha linda e uma festinha catita para o Obsessivo

Ágnes disse...

Mr. OB!! nao sei que te diga. Gosto de ti. Pode ser?