quinta-feira, 25 de setembro de 2008

A (fe)sta: os inevitáveis encontros de Maria e José

M segue J. O silêncio é mortal, principalmente porque toda a cidade em redor de ambos mergulha no mecanicismo do murmúrio de milhões que se movimentam em magote e esgrime as angústias de uma existência cosmopolita. J não tem palavras para partilhar, sente-se esmurrado pela impossibilidade da linguagem; M queria dizer-lhe muitas coisas, palavras não lhe faltam, sente-se esmurrada pela falta de um receptor activo. O caminho que os espera é longo e a comunicação ausente exalta-lhes os espíritos. M sente-se triste. Triste. Apetece-lhe desistir, apetece-lhe não continuar o trilho a que se propôs com aquele homem, quase estranho. M sente-se em perigo de morte. Conhece bem as armadilhas do amor fundo. J, por seu lado, está disposto a confessar-se-lhe: a capela está perto, em breve, juntos e em silêncio reencontrarão o Deus perdido, o Deus roubado. Movidos pela fé, sim, obviamente movidos pela fé no amor em guerra que explode à flor da pele em delírios secos, M e J, desacompanhados um do outro embora lado a lado, descem a rua a pique que confluí num beco sem saída. À esquerda desse beco, um pequeno edifício de betão, sem qualquer espécie de identidade. M questiona se será aquele o sítio onde descobrirá a intimidade de J: aquele espaço demasiado impessoal pouco poderá trazer de transcendente: a transcendência era aliás uma das suas grandes necessidades. J empurra a porta deste mini-edíficio city-suburbano. Entra. M segue-lhe os passos. O interior da capela é absolutamente nu. Paredes de betão como no exterior, no chão uma alcatifa gasta e algumas almofadas espalhadas aleatoriamente. Não há um único santo para que M se renda e possa rezar. São apenas sete as pessoas no interior da sala. Com M e J, são agora nove. Um dos homens que se encontra sentado nas almofadas usa batina. A sua voz ressoa nas paredes. M sente-se intimidada: o discurso é-lhe quase imperceptível, mas em poucos minutos sente a convergência dos crentes em Deus. É a pura espectadora de um cenário de união perante uma força maior que lhe é estranha. Para J, M tinha roubado a capacidade de interacção com a convergência daquele minúsculo e bizarro grupo. Levá-la lá era, acima de tudo, um acto de amor. J decidira partilhar com a desconhecida o seu Deus, a sua fé. Não esperava de todo recuperá-los; sabia bem que para sempre tinham sido levados por uma mulher. M sentia-se comovida: o ritual incomodava-a, fazia-a sentir-se cúmplice de uma qualquer espécie de alienação. Uma mulher levanta-se. Canta. Canta chorosa. Canta o desamor e a guerra, canta os filhos mortos e as mãos calejadas do trabalho. M soluça. M perde o controlo, está definitivamente envolvida. A expressão está absolutamente fixa, as lágrimas escorrem automáticas pelo seu rosto. M volta soluçar. Nunca tinha ouvido nada assim, tudo no corpo daquele mulher-cantora eram angústias mal talhadas e dores de parto com filhos por nascer. Que força era aquela força que a fazia sentir-se pequeníssima? Que força era aquela que a deixava prostrada e pronta a render-se a um Deus? Que Deus poderia tê-la chamado? Para M não havia Deus senão aquele que tinha roubado involuntariamente a J e que não desejava conhecer assim tão de perto. Que Deus perdoaria esta dose de humanidade? A mulher-cantora senta-se. A sua boca está seca e fechada. Estava findo o encontro. J olha para M; M está desfigurada, esta expressão não lhe pertence. Começa um novo aprender, um novo começar. J levanta-se em silêncio, M segue-o em silêncio também. Vão regressar à cabine telefónica, muito embora sejam incapazes de expulsar uma palavra entre os lábios. Sabem simplesmente que é esse o caminho e reconhecem claramente o acto de amor a que se tinham exposto: J revela o segredo, M revela a sua impotência perante a revelação. O amor devasta-os, os corpos estão doridos, doridos de uma dor física, cansados de uma viagem que consumiu os músculos. A festa do amor manifestou-se: M e J amaram-se dentro da pequena capela, descobriram a intimidade. Caminham de novo para a cabine. A chuva continua a cair. Estão encharcados, talvez de lágrimas. Depois do longo trilho travado sempre em silêncio, chegam à rua da espera, da comunicação em bruto. A cabine está vazia: refugiam-se nos dois metros quadrados de fé. O auscultador do telefone está fora do descanso. Ouve-se um (piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii) contínuo. Abraçam-se. Dançam devagarinho, quase nem sequer se mexem. A fé moveu os seus corpos para a (fe)sta.

2 comentários:

Catarina disse...

acho que vou reunir as aventuras todas de J e M e fazer um livrinho para ler de enfiada.

Ágnes disse...

Eu já estou a fazer isso. Tem sido difícil ler tudo de uma vez sem perder o fio à meada...