
Às vezes sinto-me capaz de matar um homem pelo amor que lhe tenho.
Como a Salomé fez com o Iokanaan.
Como a Salomé fez com o Iokanaan.
Há vários dias que ando preocupada com esta coisa da responsabilidade: é disso que me acusam; ela é responsável...demais. Responsável demais. Nunca acreditei que pudesse ser acusada deste crime, não porque não o cometa, simplesmente porque para mim, responsabilidade não era sinónimo de delito. Depois de meditar arduamente acerca desta temática percebi que tenho um lugar no banco dos réus: a responsabilidade tem aniquilado muitas coisas que poderiam acontecer se a preocupação em cumprir regras não fosse tanta. E pouco a pouco, vou percebendo que soltar um bocadinho as amarras só me fará bem, e até posso recusar cafés e tudo. Posso dizer que hoje não é o dia, e que amanhã continuarei sem vontade de sair do ninho que é a minha casa. Posso sempre inventar desculpas estapafúrdias como pequenas gripes para poder ficar mais duas horas na cama. E não tenho de me sentir culpada por não frequentar a única cadeira teórica que tenho este ano. Fiz sempre tudo certinho, foi sempre tudo muito perfeitinho: as prendas para os amigos, a letra, a roupa. As coisas comigo são impecáveis. E hoje sinto que preciso de me sujar: preciso de pôr as mãos na terra e ficar com as unhas castanhas, preciso de chegar amarrotada a uma festa ou dizer disparates aos amigos que conheço há anos. Preciso desesperadamente de cometer erros, chocar contra os objectos que estão no mesmo sítio desde que me lembro deles, ficar com nódoas negras tremendas nos sítios todos do corpo. Preciso de dizer as coisas que geralmente não digo e ficar aliviada. Preciso de preparar discursos muito estruturados no comboio para dizer a alguém e que os planos me saíam furados assim que abro a boca. Preciso de ficar a dançar sem dizer nada a nínguem. Planeio fugir durante uns dias e omitir a minha fuga: vou encontrar uma casa com lareira no meio das árvores e por lá ficarei enleada em prendas de natal e papéis para rabiscar as tristezas. Os últimos meses têm sido uma aventura, trabalho demais, durmo de menos. Confundo as coisas simples. Tenho-me sentido em estado de alerta, coberta de preocupação e responsabilidade. Hoje, sem mais nem menos, sinto-me mais levezinha e parece que posso voltar a arrumar o quarto que ficou caótico durante tanto tempo. Desconheço a forma como reorganizarei os objectos, tenho menos livros na prateleira e isso não me incomoda porque sei que estão em boas mãos. E sei que vou voltar a encontrar a minha casa, o meu porto, exactamente como o deixei há seis meses atrás. Sinto-me pronta e com algum egoísmo, não me apetece paz, nem nada dessas coisas natalícias. Para mim e para aqueles que me são queridos, só quero que possam arrumar as coisas no sítio onde pertencem. Quero que depois das grandes ventanias chegue a hora em que tudo se compõem, em que nos reconhecemos como antes. Quero que possamos encontrar aquela juventude inocente em que éramos felizes e despreocupados. Quero ter quinze anos tendo vinte. Quero beijinhos e depois beijos. Quero saber o caminho para casa. Desejo intimamente que saibam o vosso ou que o descubram. Eu tenho tudo dessarumado há demasiado tempo. Começam hoje as arrumações. 
António e Maria, Odisseia Cabisbaixa, Teatro da Garagem
29 de Out a 30 de Nov, Qua a Dom 21h 30
O Dali pensou na boca, depois na cara e depois num sofá que é uma boca. O Dali pensou no sofá-boca. O sofá transformou-se num ícone. O ícone transformou-se em merchandising. O merchandising são uns brincos sofá-boca. A princesa posso ser eu. O Zé pensou na princesa e ofereceu-lhe os brincos sofá-boca.


