quinta-feira, 21 de maio de 2009

O pessegueiro

Um dia, há muitos anos atrás, vi-te roer as unhas até ficares com a ponta dos dedos em sangue. A tua tarefa era interminável; esperava que te controlasses, mas havia um certo mistério nesse teu desmembramento da carne. Devia ter-te avisado; devia ter-te avisado que roer as unhas dessa forma podia causar-te dores verdadeiramente insuportáveis. Mas não pude porque o espectáculo a que assistia dava-me um certo gozo: ver-te a ti, naquela tarefa interminável de arruinar os dedos. Depois, dentro do balde que a mãe guardava debaixo do pessegueiro, já só havia sangue, o teu sangue, o sangue dos teus dedos enfermos. Deixaste tombar as mãos no rebordo do balde e olhavas para mim suplicante. Eu devia ter-te ligado as mãos, devia ter corrido violentamente para a caixa de primeiros socorros que sempre estava na prateleira da casa de banho. Mas não pude, não pude porque o espectáculo era deslumbrante. O balde de plástico baço reflectia o vermelho do teu sangue nas copas das àrvores. À minha volta ficou tudo com um aspecto encarniçado. E eu não pude, desculpa, não pude levantar-me para socorrer-te. Que moral era esta então que me fazia ficar ali, prostrada a ver-te sofrer? Moral nenhuma e isso também não era importante. As tuas mãos destruídas eram encantadoras. Havia pequenos destroços de pele que restaram agarrados aos dedos por finas membranas; das unhas nada sobrara. No lugar de dedos havia agora um conjunto de pequenas amputações. Que épicas eram as tuas mãos; que épicas. A mãe ao fundo chamava por nós, perguntava se estavámos outra vez a brincar em cima das àrvores. Gritei-lhe, disse-lhe que estava tudo bem, que era só um jogo da apanhada. E as tuas mãos, para ali deixadas a apodrecer devagarinho. Os teus olhos sorriram para mim, havia em ti uma confiança inacreditável como se eu pudesse resolver o teu crime que também era meu. Pergunto-me muitas vezes se terás tido medo de ver o sangue inteiro do teu corpo dentro de um balde. Pergunto-me muitas vezes se terá doido ou se simplesmente o sangue te embalou como a mim. Nunca chegamos a falar sobre o dia em que o pessegueiro ficou vermelho. Acho que a beleza da nossa pequena tortura foi precisamente essa. Testar limites: é isso; testar limites convictamente. Embora saiba que nunca me teria colocado no teu lugar. Nunca conseguiria destruir os meus próprios dedos em prol de uma imagem épica. Sempre me contentei por ser espectadora da desgraça. Até hoje. Incitei muitas revoltas e nunca fiz parte de nenhuma. Delicio-me com o que resta, com as amputações que sobram para contar a história. A mãe acabou por chegar. Chorava como um animal. Uivava com uma dor deslumbrante. Olhou para mim enfurecida, capaz de me matar. Não disse nada. E tu, permancias serena, serena, não escorria uma lágrima no teu rosto, nem no meu. A mãe pegou em ti e meteu-te debaixo da mangueira. Tentou lavar o sangue da roupa, das tuas mãos, dos teus cabelos. E não podia. Não podia porque o sangue já era tudo, dentro e fora de ti. A ambulância acabou por chegar. Acabaste por ir dentro da sirene. A mãe foi contigo. Deixou-me no jardim, por baixo do pessegueiro. Enquanto estava sozinha cantei aquela canção que sempre cantavamos quando estavamos bem. Cantei até ser de noite e o cheiro a sangue estar fundido no pessegueiro e no balde. Passaram-se anos sem fim, acabaste por recuperar as unhas, a mãe acabou por me perdoar, mas o balde manchado de sangue continua debaixo do pessegueiro. Nunca ninguém teve coragem para o guardar a tua tarefa interminável de arruinar os dedos...